Descrição de chapéu The New York Times

Uma possível cura da diabetes? Para um homem, pelo menos, parece ter funcionado

Tipo severo da doença pode ser curado com células-tronco; alguns especialistas têm ressalvas

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Gina Kolata
The New York Times

Quando sua taxa de glicose no sangue caía muito, ele desmaiava de repente. Brian bateu com a motocicleta contra um muro. Desmaiou no jardim da casa de um freguês quando lhe entregava suas correspondências. Após esse incidente seu supervisor o mandou aposentar-se, depois de um quarto de século trabalhando para os Correios. Brian tinha 57 anos.

Sua ex-esposa, Cindy Shelton, o chamou para viver com ela em sua casa em Elyria, Ohio. "Eu tinha medo de deixá-lo sozinho o dia inteiro", explicou.

Alguns meses atrás Cindy viu um convite para pessoas com diabetes tipo 1 participarem de um ensaio clínico da Vertex Pharmaceuticals. A empresa estava testando um tratamento desenvolvido ao longo de décadas por um cientista que prometeu encontrar uma cura depois de seu filho bebê e sua filha adolescente terem apresentado a doença devastadora.

Pessoa aplica uma injeção de insulina em seu abdômen
Diabético aplica injeção de insulina em sua casa, antes do jantar, em Maryland, nos Estados Unidos - Hannah Beier - 15.ju.21/Reuters

Brian Shelton foi o primeiro paciente. No dia 29 de junho deste ano ele recebeu uma infusão de células criadas a partir de células-tronco, mas exatamente iguais às células pancreáticas produtoras de insulina que faltavam em seu corpo.

Agora seu corpo controla automaticamente seus níveis de insulina e glicose no sangue.

Brian, que tem 64 anos, pode ser a primeira pessoa a ser curada da diabetes tipo 1 com um novo tratamento que está levando especialistas a se arriscarem a ter a esperança de que uma ajuda possa estar a caminho para muitos dos 1,5 milhão de americanos que sofrem de diabetest tipo 1.

"É uma vida completamente nova", disse Brian. "É como um milagre."

Especialistas em diabetes reagiram com espanto, mas pediram cautela. O estudo prossegue e vai levar cinco anos, envolvendo 17 pessoas com casos graves de diabetes tipo 1. O tratamento não é cogitado para a diabetes tipo 2, mais comum.

"Estamos à espera de alguma coisa assim acontecer literalmente há décadas", comentou o médico Irl Hirsch, da Universidade de Washington, especialista em diabetes que não participou da pesquisa. Ele quer ver o resultado, que ainda não foi publicado num periódico científico revisto por pares, replicado em muito mais pessoas. Hirsch também quer saber se haverá efeitos adversos imprevistos e se as células durarão por toda a vida, ou se o tratamento precisará ser repetido.

Mesmo assim, ele disse, "em última análise, é um resultado fantástico".

O médico Peter Butler, da UCLA, especialista em diabetes que tampouco participou da pesquisa, concordou com Hirsch e fez as mesmas ressalvas.

"É um resultado notável", disse Butler. "Poder reverter a diabetes, devolvendo aos pacientes as células que lhes faltam, é comparável ao milagre de quando a insulina primeiro foi disponibilizada, cem anos atrás."

E tudo começou com o trabalho de pesquisa desenvolvido ao longo de 30 anos por um biólogo da Universidade Harvard, Doug Melton.

"Uma doença terrível"

Melton nunca pensara muito sobre diabetes até 1991, quando seu filho de 6 meses de idade, Sam, começou a tremer, vomitar e ofegar.

"Ele estava muito doente, e o pediatra não sabia o que era", afirmou Melton. Ele e sua mulher, Gail O’Keefe, levaram seu bebê às pressas para o Boston Chirldren’s Hospital. A urina de Sam apresentava altíssimo teor de glicose —sintoma de diabetes.

A doença, que ocorre quando o sistema imunológico destrói as ilhotas pancreáticas, células que produzem insulina, frequentemente começa por volta dos 13 ou 14 anos de idade. Diferentemente da diabetes tipo 2, mais comum e mais branda, a diabetes tipo 1 se torna letal em pouco tempo a não ser que o paciente receba injeções de insulina. Ninguém melhora espontaneamente.

"É uma doença terrível, terrível", disse Butler, da UCLA.

A única cura que já funcionou é um transplante de pâncreas ou um transplante dos agrupamentos de células produtoras de insulina do pâncreas, conhecidas como ilhotas pancreáticas, do pâncreas de um doador. Mas a escassez de órgãos inviabiliza essa opção para a grande maioria dos doentes.

"Mesmo que estivéssemos numa situação utópica, nunca teríamos pâncreas em número suficiente", disse o médico Ali Naji, cirurgião de transplantes da Universidade da Pensilvânia. Ele foi o primeiro a realizar transplantes de ilhotas pancreáticas e hoje é o pesquisador principal do ensaio clínico com o qual Brian Shelton foi tratado.

Pistas azuis

Para Melton e O’Keefe, cuidar de um bebê com diabetes tipo 1 era altamente assustador. O’Keefe tinha que picar os dedos e os pés de seu filho quatro vezes por dia para checar sua taxa de glicose no sangue. Em seguida, precisava lhe injetar insulina. A insulina nem sequer era vendida na dose apropriada para um bebê tão pequeno. Seus pais tinham que diluir as doses.

"Gail me disse: ‘Se eu vou ter que fazer isto daqui, você vai ter que entender esta doença maldita’", Melton recordou. A filha deles, Emma, quatro anos mais velha que Sam, também desenvolveria a doença mais tarde, aos 14 anos.

Melton estava estudando o desenvolvimento de rãs, mas abandonou esse trabalho, decidido a buscar uma cura da diabetes. Ele voltou sua atenção às células-tronco embrionárias, que possuem o potencial de tornar-se qualquer célula do corpo. Sua meta era convertê-las em ilhotas pancreáticas, para tratar pacientes diabéticos.

O desafio era descobrir qual sequência de mensagens químicas converteria células-tronco em ilhotas pancreáticas produtoras de insulina. Para isso foi preciso entender o desenvolvimento pancreático normal, descobrir como as ilhotas são criadas no pâncreas e conduzir experimentos intermináveis para levar as células-tronco embrionárias a converter-se em ilhotas pancreáticas. Foi um processo demorado.

Após anos em que nada deu certo, numa noite de 2014 uma pequena equipe de pesquisadores, incluindo a pós-doutoranda Felicia Pagliuca, estava no laboratório fazendo mais um experimento.

"Não estávamos muito otimistas", ela afirmou. Os cientistas tinham colocado uma tintura no líquido no qual as células-tronco estavam crescendo. O líquido ficaria azul se as células produzissem insulina.

O marido de Pagliuca já havia telefonado para perguntar quando ela ia voltar para casa. Então ela viu um azul muito leve que foi ficando mais e mais escuro. Ela e os outros pesquisadores ficaram extáticos. Tinham criado ilhotas pancreáticas funcionais a partir de células-tronco embrionárias, pela primeira vez.

Revolução no tratamento do diabetes, insulina completa 100 anos
Revolução no tratamento do diabetes, insulina completa 100 anos - Pixabay

O laboratório saudou o avanço com uma pequena festa e um bolo. Os cientistas mandaram fazer boinas de lã azul brilhante com cinco circulos nas cores vermelho, amarelo, verde, azul e roxo, representando os estágios pelos quais as células-tronco tinham que passar para tornar-se ilhotas pancreáticas funcionais. Eles sempre haviam torcido para chegar ao roxo, mas até então sempre tinham encalhado no verde.

Ciente de que precisaria de mais recursos para produzir um fármaco que pudesse chegar ao mercado, o passo seguinte para Melton foi abrir uma empresa.

Momentos de verdade

Sua empresa foi fundada em 2014 com o nome Semma, uma fusão dos nomes de seus filhos, Sam e Emma.

Um desafio foi descobrir como criar ilhotas pancreáticas em grande quantidade com um método que pudesse ser replicado por outros. Isso levou cinco anos.

Chefiada pelo especialista em terapia celular e genética Bastiano Sanna, a empresa testou as células que produziu em camundongos e ratos, demonstrando que funcionavam bem e curavam a diabetes em roedores.

Nesse ponto, para o passo seguinte —um ensaio clínico com pacientes humanos— era necessária uma empresa grande, experiente e bem financiada, com centenas de funcionários. Tudo precisava adequar-se aos critérios exigentes da FDA (Agência de Alimentos e Drogas dos Estados Unidos) —milhares de páginas de documentos teriam que ser preparados e muitos ensaios clínicos planejados.

O acaso interveio. Em abril de 2019, numa reunião no Hospital Geral de Massachusetts, Melton topou com um antigo colega seu, o médico David Altshuler, que havia sido professor de genética e medicina em Harvard e vice-diretor do Broad Institute. Enquanto almoçavam, Altshuler, que se tornara o diretor científico da Vertex Pharmaceuticals, perguntou a Melton quais eram suas novidades.

Melton tirou um pequeno frasco de vidro com uma bolinha roxa brilhante no fundo.

"Estas são ilhotas pancreáticas que criamos na Semma", ele disse a Altshuler.

A Vertex trabalha com doenças humanas cuja biologia é compreendida. "Acho que pode haver uma oportunidade", Altshuler lhe disse.

Seguiram-se reuniões, e oito semanas mais tarde a Vertex comprou a Semma por US$950 milhões. Com a aquisição, Sanna passou a ser vice-presidente executivo da Vertez.

Menos de dois anos após a aquisição da Semma, a FDA autorizou a Vertex a iniciar um ensaio clínico, tendo Brian Shelton como seu paciente inicial.

Como os pacientes que recebem transplantes pancreáticos, Brian precisa tomar medicamentos que suprimem seu sistema imune. Ele diz que os remédios não lhe causam efeitos colaterais e que os acha muito menos onerosos e arriscados do que ficar constantemente monitorando sua taxa de glicose no sangue e tomando insulina. Ele terá que continuar a tomar os medicamentos, para impedir que seu corpo rejeite as células infundidas.

Mas o especialista em diabetes John Buse, da Universidade da Carolina do Norte e sem vínculos com a Vertex, diz que a imunossupressão o faz pensar duas vezes. "Precisamos avaliar com cuidado o que é mais arriscado: arcar com os problemas da diabetes ou enfrentar as potenciais complicações dos medicamentos imunussupressores."

No mês passado a Vertex estava pronta para revelar os resultados a Melton. Ele não esperava grande coisa.

"Eu estava preparado para ter que lhes dar uma injeção de ânimo", afirmou.

Normalmente um homem calmo, Melton estava nervoso, antevendo o que parecia que seria o momento da verdade. Ele passara décadas e investira todas suas energias nesse projeto. Quando a apresentação da equipe da Vertex terminou, um sorriso enorme se estampou em seu rosto: os dados eram reais.

Melton saiu da Vertex e foi para casa jantar com Sam, Emma e O’Keefe. Quando se sentaram para comer, ele lhes contou sobre os resultados.

"Digamos apenas que houve muitas lágrimas e abraços", disse.

Para Brian, o momento da verdade chegou alguns dias após o procedimento, quando ele saiu do hospital. Ele mediu sua taxa de glicose no sangue. Estava perfeita. Ele e Cindy fizeram uma refeição. Sua taxa de glicose permaneceu na faixa normal.

Brian chorou quando viu os números.

"A única coisa que posso dizer é ‘obrigado’."

Tradução de Clara Allain.

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