Descrição de chapéu The New York Times Rússia

Cientistas pesquisam se gripe russa no século 19 foi causada por coronavírus

Em 1889, um vírus respiratório provocou uma pandemia igual à atual da Covid-19, com as mesmas reações e sequelas

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Gina Kolata
The New York Times

Em maio de 1889, as pessoas que viviam em Bukhara, cidade que fazia parte do Império Russo, começaram a adoecer e morrer. O vírus respiratório que as matou ficou conhecido como gripe russa. Ele varreu o mundo, sobrecarregando hospitais e matando os idosos com ferocidade.

Escolas e fábricas foram obrigadas a fechar porque muitos estudantes e trabalhadores adoeceram.

Alguns dos infectados descreveram um sintoma estranho: perda de olfato e paladar. E alguns dos que se recuperaram relataram uma exaustão persistente.

Imagem computadorizada do coronavírus que provoca a Covid-19; cientistas tentam descobrir se a gripe russa foi provocada por vírus semelhante, em 1889
Imagem computadorizada do coronavírus que provoca a Covid-19; cientistas tentam descobrir se a gripe russa foi provocada por vírus semelhante, em 1889 - Nexu Science Communication/via REUTERS

A gripe russa finalmente acabou alguns anos depois, após pelo menos três ondas de infecção.

Seus padrões de infecção e sintomas levaram alguns especialistas em vírus e historiadores da medicina a se perguntar: a gripe russa pode realmente ter sido uma pandemia causada por um coronavírus? E seu curso poderia nos dar pistas sobre como a pandemia de Covid se desenrolará e terminará?

Se um coronavírus causou a gripe russa, alguns acreditam que o patógeno ainda pode estar por aí, seus descendentes circulando pelo mundo como um dos quatro coronavírus que causam o resfriado comum.

Nesse caso, seria diferente das pandemias de gripe, cujos vírus permanecem por algum tempo e são substituídos por novas variantes anos depois, que causam uma nova pandemia.

Se foi isso o que aconteceu com a gripe russa, pode ser um bom presságio para o futuro. Mas há outro cenário. Se o coronavírus de hoje se comporta mais como uma gripe, a imunidade contra vírus respiratórios é passageira. Isso pode significar um futuro de vacinas anuais contra a Covid.

Mas alguns historiadores expressam cautela sobre a hipótese da gripe russa.

Imagem de microscópio eletrônico do vírus Sars-Cov-2, o novo coronavírus, que provoca a Covid-19
Imagem de microscópio eletrônico do vírus Sars-Cov-2, o novo coronavírus, que provoca a Covid-19 - Niaid Integrated Research Facility (IRF)/via REUTERS

"Há muito pouco, quase nenhum dado concreto" sobre a pandemia de gripe na Rússia, disse Frank Snowden, da Universidade de Yale.

Há, porém, uma maneira de resolver o mistério da gripe russa. Os biólogos moleculares hoje têm ferramentas para extrair fragmentos de vírus antigos de tecido pulmonar preservado de vítimas da gripe russa e descobrir que tipo de vírus era.

Alguns pesquisadores estão agora em busca desses tecidos em museus e escolas de medicina que podem ter frascos antigos com espécimes flutuando em líquido conservante que ainda contenham fragmentos de pulmão.

Gripe russa

Tom Ewing, da Universidade Virginia Tech, um dos poucos historiadores que estudou a gripe russa, notou paralelos impressionantes com a atual pandemia de coronavírus: instituições e locais de trabalho fecharam porque muitas pessoas estavam doentes; médicos sobrecarregados de pacientes; e ondas de infecção.

"Eu diria que talvez", disse Ewing, quando perguntado se a gripe russa foi um coronavírus.

O doutor Scott Podolsky, professor de saúde global e medicina social da Escola de Medicina de Harvard, chamou a ideia de "plausível".

E o doutor Arnold Monto, professor de saúde pública, epidemiologia e saúde global da Universidade de Michigan, a considerou "uma especulação muito interessante".

"Há muito nos perguntamos de onde vieram os coronavírus", disse Monto. "Já houve uma pandemia de coronavírus no passado?"

Harald Bruessow, microbiologista suíço aposentado e editor da revista Microbial Biotechnology, aponta um artigo publicado em 2005 que concluiu que outro coronavírus hoje em circulação, conhecido como OC43, que causa resfriados graves, pode ter saltado de bois para seres humanos em 1890.

Três outros coronavírus menos virulentos também circulam. Talvez um desses vírus, o OC43, seja uma variante remanescente da pandemia de gripe russa.

Mulher é vacinada contra a Covid-19 em Nizhny Novgorod, na Rússia
Mulher é vacinada contra a Covid-19 em Nizhny Novgorod, na Rússia - Anastasia Makarycheva - 10.fev.22/Reuters

Embora reconhecendo as incertezas, Bruessow apostaria que a gripe russa foi causada por um coronavírus. Seu trabalho, que envolveu pesquisas em antigos jornais, revistas e relatórios de saúde pública sobre a gripe russa, descobriu que alguns pacientes se queixaram de condições como perda de paladar e olfato e sintomas prolongados do tipo Covid.

Alguns historiadores especularam que o "mal du siècle" no século 19 pode ter sido na verdade a lassidão causada por sequelas da gripe russa.

Esses sintomas não são típicos de pandemias de gripe.

Assim como a Covid, relata Bruessow, a gripe russa parece ter matado preferencialmente idosos, mas não crianças. Ewing, examinando registros de 1890 do Conselho Estadual de Saúde em Connecticut, encontrou um padrão semelhante. Se for verdade, isso tornaria o vírus de 1890 diferente dos vírus da gripe, que matam tanto os muito jovens quanto os muito velhos.

Para aqueles que buscam pistas de como a atual pandemia de coronavírus poderá terminar, alguns acham que as duas últimas pandemias podem oferecer uma pista.

À medida que a pandemia de gripe russa diminuía, disse J. Alexander Navarro, historiador da Universidade de Michigan, "as pessoas rapidamente seguiram suas vidas". Foi o mesmo com a pandemia de gripe de 1918. As notícias dos jornais sobre isso diminuíram. E, disse ele, "o luto era quase inteiramente um assunto privado".

"Suspeito muito que o mesmo ocorrerá hoje", disse Navarro.

"Na verdade, de muitas maneiras, acho que já ocorre."

Quando as pandemias se esgotam

Algumas pandemias —pelo menos nos últimos cem anos, quando suas causas puderam ser identificadas— foram causadas por vírus respiratórios. Exceções recentes são zika e chikungunya —antigos vírus transmitidos por mosquitos— e HIV, que é transmitido por relações sexuais e compartilhamento de agulhas.

Grandes pestes aterrorizaram a humanidade nos tempos antigos e pré-modernos, principalmente a peste bubônica. Propagada principalmente por pulgas de ratos, ela inaugurou um período terrível, matando multidões na Europa de 1347 a 1352. Foram tantos mortos que os enterraram em valas comuns, empilhados.

A peste bubônica continuou retornando à Europa durante séculos depois que surgiu. Mas como essa praga terminou oferece poucas lições relevantes para a pandemia de hoje.

Os pesquisadores também não conseguiram encontrar respostas em estudos com animais. Eles tentam há décadas encontrar leis gerais para prever como as pandemias progridem, infectando centenas de milhares de camundongos com vários vírus e bactérias, disse o doutor George Davey Smith, professor de epidemiologia clínica na Escola de Medicina de Bristol, na Inglaterra. Os experimentos continuaram ano após ano na Inglaterra, Alemanha, Estados Unidos e Austrália. Todos procuraram maneiras de prever quando e como uma epidemia poderia terminar.

Nada foi encontrado.

"Eles não conseguiam prever o que ia acontecer", disse Davey Smith.

Portanto, os pesquisadores que tentam entender como as pandemias respiratórias acabam só podem estudar a gripe e a atual pandemia de coronavírus.

Apenas as pandemias de gripe terminaram. Essa, disse o doutor David Morens, pesquisador da gripe e conselheiro sênior do diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos EUA, é uma limitação real quando se tenta entender a história natural das pandemias de doenças respiratórias.
"Temos apenas 104 anos e quatro pandemias diferentes para fazer previsões", disse ele.

As pandemias de gripe também são desconcertantes.

A primeira das quatro pandemias de gripe nas quais o vírus é conhecido começou em 1918. A pandemia diminuiu após três ondas de infecções e esse vírus, o H1N1, permaneceu em circulação, de forma menos virulenta, até 1957, quando desapareceu.

"Até onde podíamos dizer em 1957, esse vírus tinha desaparecido para sempre", disse Morens.

Então surgiu o H2N2. Era substancialmente diferente do H1N1 e causou uma pandemia. Esse padrão se repetiu com o surgimento do H3N2 em 1968.

Mas em 1977 algo estranho aconteceu. O H1N1 voltou depois de duas décadas sumido. Ele e outro vírus, o H3N2, circulam desde então.

"Até 1977, nunca tínhamos dois subtipos circulando ao mesmo tempo", disse Monto. "Não entendemos por que um subtipo expulsava o outro e por que isso não aconteceu em 1977."

E em 2009 o H1N1, que tinha reingressado na população humana em 1977, foi substituído por uma versão geneticamente distinta que veio de porcos, causando outra pandemia.

Mas por que uma nova variante faria a anterior desaparecer?

Isso "é outro mistério", disse Morens.

Pelo menos existem vacinas úteis contra a gripe. Mas elas têm de ser administradas todos os anos por causa do declínio da imunidade. Em um estudo na Inglaterra com coronavírus de resfriado comum, os pesquisadores descobriram que a imunidade a infecções por esses vírus também diminui em um ano.

"Precisaremos de uma vacina contra a Covid todos os anos?", perguntou o doutor Jeffery Taubenberger, chefe da seção de patogênese e evolução viral do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas. "É nessa direção que estamos indo."

Depois, há a questão de por que a gripe russa e agora a pandemia de Covid produziram ondas de mortalidade crescente e decrescente.

"Somos bastante ignorantes, e isso se estende às ondas que estamos vendo nos últimos dois anos com a Covid", disse Morens. A evolução dos vírus não é a resposta completa, acrescentou.

"Não há boas explicações, que eu saiba."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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