Descrição de chapéu The New York Times

Após anos de ditadura, Uzbequistão desmantela polícia política e repressão

Na contramão de endurecimento no resto do mundo, país da Ásia começa a punir desvios de agentes

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Soldados de roupa camuflada aparecem de pé acima de escadaria de três degraus em uma praça; ao fundo, uma construção, de onde saem mais militares; área possui algumas árvores, que estão com poucas folhas secas
Soldados aproveitam seu dia de folga no centro de Bukhara, no Uzbequistão; novo líder do país solta presos políticos, faz expurgo em polícia política e libera alguns ativistas - Dmitry Kostyukov/The New York Times
Andrew Higgins
Tashkent (Uzbequistão)

Desmantelar um Estado policial nunca é fácil, e a prova de o quanto esse processo pode ser provar complicado basta acompanhar o que acontece em uma cela subterrânea no Uzbequistão.

Foi ao centro de detenção da capital, Tashkent, que o jornalista Bobomurod Abdullaev foi levado e, segundo a mulher e o advogado, torturado por agentes do temido Serviço Nacional de Segurança uzbeque, em setembro.

Mas também foi lá que Abdullaev, acusado de "conspiração para derrubar o regime constitucional", foi autorizado em março a se reunir com um advogado cuja visita o serviço de segurança inicialmente havia proibido, e lhe contar sobre os maus tratos que sofreu.

Dois encarregados da investigação foram afastados do caso, e estão eles mesmos sendo investigados por conduta indevida, em meio a um amplo expurgo no antes intocável serviço de segurança.

As reviravoltas no caso apontam para a questão central que a nova liderança do país precisa resolver na abertura em um dos países mais repressivos do mundo, dezoito meses depois da morte do ditador Islam Karimov.

Será possível transformar um aparato de segurança poderosíssimo, e dotado de raízes profundas na sociedade da antiga república soviética, em uma agência de defesa da lei?

Segundo o advogado de Abdullaev, Sergei Mayorov, o jornalista foi espancado repetidamente, impedido de dormir e mantido nu por seis dias em uma cela gélida. 

Ele disse que só comeu no quinto dia de detenção, e mesmo assim só depois de desmaiar. As autoridades o advertiram de que, a menos que confessasse, sua mulher e filha seriam estupradas.

A internet continua censurada, embora menos que antes, e persiste o medo do serviço de segurança. As pessoas continuam a considerar perigoso até mesmo dizer em público o nome da organização.

Um relatório da ONG Human Rights Watch concluiu que, embora a repressão tenha atenuado, a detenção de Abdullaev e outros jornalistas e o papel do SNB na monitoração, censura e punições a publicações críticas, "ainda têm efeito paralisante" sobre a liberdade de expressão e "são um obstáculo ao desmonte do sistema autoritário no país".

Mas líderes importantes e até mesmo críticos severos insistem em que o novo líder do país, Shavkat Mirziyoyev, fala sério quanto a contrariar a tendência mundial ao endurecimento de regimes.

Os vizinhos do Uzbequistão, todos autoritários com a exceção do Quirguistão, não demonstram sinais de afrouxamento. O Cazaquistão, governado pelo mesmo líder desde 1991, ainda não permite oposição real, e o Tadjiquistão e Turcomenistão se tornaram mais repressivos.

No Uzbequistão, pelo menos 27 dissidentes conhecidos foram libertados, e cerca de 18 mil pessoas que o SNB classificava como desleais na era de Karimov tiveram seus nomes removidos de uma lista negra que as impossibilitava de viajar ou obter emprego.

O governo também começou a lidar com uma das formas mais severas e frequentes de abuso dos direitos humanos —o uso de trabalhadores forçados durante a colheita anual do algodão.

"Houve uma grande mudança para melhor", disse Jonas Astrup, assessor técnico da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que se queixava há anos dos abusos.

Sodiq Safoev, vice-presidente do Senado uzbeque e um dos confidentes de Mirziyoyev, disse que o degelo continuaria, apesar da oposição de alguns setores, porque existe um consenso em favor da mudança.

CETICISMO

Surat Ikramov, veterano ativista, disse que o caso era parte de uma "grande luta". Ele elogiou o novo mandatário por tentar reduzir os poderes do SNB, mas que o sistema deixado por Karimov tinha raízes profundas.

Ikramov acredita que o caso Abdullaev, que o SNB acusava de ser autor de textos políticos ocasionalmente bem informados mas incendiários, publicados sob pseudônimo, tinha por objetivo mostrar ao novo presidente que ele "tem inimigos em toda parte", e que não podia correr o risco de abrandar a repressão.

"Sob Karimov, eles eram um Estado dentro do Estado, e obviamente não querem que isso mude", disse Ikramov.

No primeiro dia do julgamento de Abdullaev, em 7 de março, o juiz pediu que o jornalista tirasse a camisa para verificar traços de tortura, e em seguida aceitou pedido da defesa por uma suspensão do julgamento, até que uma equipe médica pudesse realizar um exame completo do acusado.

O exame médico, que segundo ativistas dos direitos humanos ignorou aspectos cruciais, como as datas da detenção de Abdullaev, não confirmou que o jornalista havia sofrido tortura.

Mas quando o julgamento foi retomado, na semana passada, Abdullaev e outros acusados depuseram em sessão aberta, na presença de representantes da Human Rights Watch e de organizações noticiosas que, na era de Karimov, estavam proibidas de entrar no Uzbequistão.

De sobretudo preto e chapéu redondo da mesma cor, homem corre por praça que o leva até um prédio em Bukhara, no Uzbequistão
Homem anda em direção ao Chor Bakr, atração turística perto de Bukhara, no Uzbequistão - Dmitry Kostyukov/The New York Times

Em um país no qual os tribunais por anos não fizeram mais que carimbar veredictos decididos pelo SNB, a disposição do juiz de considerar a tortura e abrir o tribunal a observadores, disseram ativistas dos direitos humanos, eram sinais claros de que o Uzbequistão está tentando mudar.

Karimov, que governou o país de 1991 até sua morte em 2016, não perdoava dissidências, especialmente depois de inquietações na cidade de Andijonin, em 2005, que terminaram com a morte de centenas de manifestantes pacíficos executados por agentes armados do SNB.

A obsessão do ditador quanto a controlar os dissidentes era tamanha, de acordo com um ex-embaixador britânico em Tashkent, que ele chegou a ordenar que alguns de seus oponentes fossem cozinhados até a morte. Karimov também ordenou a prisão de membros de sua família.

Shukhrat Ganiev, diretor do Centro Legal Humanitário, na cidade de Bukhara, recorda ter pensado que Mirziyoyev, antigo burocrata do regime soviético que substituiu Karimov, seria como seu predecessor.

"Aconselhei as pessoas a nada esperarem dele", ele disse. Hoje, livre de vigilância e agradavelmente surpreso com o tom adotado pela nova liderança, ele mudou de ideia. "Admito que estava errado".

Em visita a Bukhara em fevereiro, Mirziyoyev descreveu os membros descontrolados do serviço de segurança como "cachorros loucos" que precisavam ser abatidos.

"Nenhum outro país conferiu tamanho poder a pessoas inescrupulosas em uniforme", disse o presidente, prometendo que puniria os oficiais responsáveis por torturas.

Ganiev disse ainda não saber se o degelo mudará o sistema em seu cerne ou "simplesmente redistribuirá postos entre os membros da elite", para criar um "novo sistema de clãs" centrado no novo líder.

Todo o poder continua a fluir da presidência, apesar da decisão de Mirziyoyev de não ocupar o vasto palácio construído para Karimov, cuja vida agora é celebrada em um museu que ocupa a área.

A esperança de ativistas como Ganiev, porém, é a de que essa concentração de poder permita que o novo presidente force até mesmo os serviços de segurança a se dobrarem à sua vontade.

EXPURGO

Nas últimas semanas, mais de uma dúzia de agentes do SNB foram presos e o serviço foi ordenado a esvaziar seu quartel-general, uma cidadela muito temida, e se mudar para instalações menos imponentes.

Isso aconteceu depois da demissão, em janeiro, de Rustam Inoyatov, que comandou o serviço de segurança por mais de 20 anos. Seu vice, Shukhrat Gulyamov, também foi demitido. Gulyamov foi julgado e condenado à prisão perpétua por tráfico de armas, conexões com o crime organizado e outros delitos.

"Parece não haver dúvida de que Mirziyoyev está limpando a casa", disse Steve Swerdlow, pesquisador da Human Rights Watch. "Pode ser que o objetivo disso seja só neutralizar a potencial oposição, mas há claramente um expurgo em curso no SNB e entre figuras chaves da procuradoria e do Ministério do Interior".

Um passo pequeno mas politicamente significativo do presidente foi assinar um decreto em 14 de março para mudar o nome do SNB para Serviço de Segurança do Estado, e redefinir sua missão como "proteger os direitos humanos e as liberdades dos cidadãos uzbeques".

A ativista Yelena Ulaeava aparece na mesa de um café em uma praça de Tashkent, no Uzbequistão; à sua frente, uma xícara de chá, um bloco de papel e um açucareiro
Presa diversas vezes pelo regime, a ativista de direitos humanos Yelena Ulaeava vê melhora, mas critica a continuidade do trabalho forçado nos campos de algodão - Dmitry Kostyukov/The New York Times

Yelena Ulaeava, veterana ativista uzbeque que foi aprisionada repetidas vezes na era Karimov, internada em clínicas psiquiátricas e drogada contra sua vontade, disse que o SNB parou de incomodá-la, e à sua família, e que até permitiu que realizasse pequenos protestos diante do gabinete presidencial.

Ela contesta que o uso de trabalho forçado na colheita de algodão tenha sido abandonado, mas está tão feliz com a direção que o Uzbequistão está tomando que criou uma petição na qual propõe Mirziyoyev para o Prêmio Nobel da Paz. "Nosso país virou em 180 graus", ela disse.

Ainda assim, acrescentou, o SNB continua repleto de veteranos que "acham normal surrar pessoas", e por conta disso continua a existir medo. "Ainda não acabou", ela disse.

Segundo Safoev, o processo de colocar o serviço de segurança sob controle vem enfrentando resistência, em um país que por muito tempo ficou sujeito a limites que ninguém tinha permissão de ultrapassar.

"E o maior desses limites está dentro da cabeça das pessoas", ele afirmou.

Levar as pessoas a deixar de lado o medo e a suspeita depende de controlar o SNB, que na era de Karimov infestou o país de informantes, lotou as cadeias de prisioneiros políticos torturados rotineiramente, e esmagava qualquer vislumbre de dissidência com força bruta.

Katya Balkhibaeva, mulher de Abdullaev, disse não conseguir entender a maneira pela qual seu marido, ela e os três filhos do casal se viram arrastados a tamanho pesadelo.

"Como isso pôde acontecer é um mistério para mim", disse Balkhibaeva.

Tradução de PAULO MIGLIACCI

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.