Descrição de chapéu Coronavírus

'Invisíveis' da saúde relatam esgotamento e discriminação

Fiocruz mapeia condições de trabalho de profissionais da linha de frente, como técnicos, maqueiros e sepultadores

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Técnicos de enfermagem, agentes de saúde da família, maqueiros, condutores de ambulância, pessoal da limpeza, da cozinha e da manutenção, sepultadores. Essenciais nos serviços de saúde e presentes na linha de frente da pandemia de Covid-19, 80% desses trabalhadores de níveis técnico e auxiliar relatam desgaste profissional relacionado ao estresse psicológico, ansiedade e esgotamento mental.

No maior estudo já realizado para avaliar a saúde mental e as condições de trabalho dos considerados "invisíveis" da saúde, pesquisadores da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) mostram que a rotina da maioria deles está marcada por desigualdades sociais, sobrecarga de trabalho, ausência de direitos trabalhistas e preconceitos.

0
Agentes comunitárias de saúde visitam moradora na periferia de Manaus (AM) - Nelson Gandra-13.nov.2020/Folhapress

A pesquisa ouviu 21.480 trabalhadores das redes de saúde pública, privada e filantrópica, de 2.395 municípios de todas as regiões do país. O contingente é formado majoritariamente por mulheres (72,5%), pretos ou pardos (59%), sendo que 32,9% deles têm até 35 anos e outros 50,3%, até 50 anos.

Um quarto (23,9%) desses profissionais já apresenta comorbidades importantes: 32%, hipertensão; 15% obesidade; 13% doenças pulmonares; 12%, depressão, e 10%, diabetes.

Segundo a socióloga Maria Helena Machado, pesquisadora da Fiocruz e coordenadora da pesquisa, o estudo revela que esses trabalhadores, que somam perto de 2 milhões do país, são vítimas de discriminação social dentro da hierarquia dos serviços de saúde e que é preciso que os gestores de saúde olhem para eles.

"Eles vivem em situação de penúria, de sofrimento. Dormem mal, comem mal. Falta salário, infraestrutura, condições mínimas de trabalho. Atuam em ambientes insalubres, muitos não têm acesso a EPIs [Equipamentos de Proteção Individual] recomendados ou, quando têm, são de baixa qualidade ou usados fora dos protocolos. Alguns afirmam que já tiveram que comprar álcool, máscara, com recursos próprios. Outros nunca tinham usado uma máscara N95."

Um técnico de saúde bucal que trabalha em UTI diz que, para seguir os protocolos exigidos, seria preciso usar uma paramentação adequada e condições de trabalho inexistentes no hospital onde trabalha. "Somos obrigados a usar máscara N95 por 15 dias", diz ele, um dos entrevistados na pesquisa.

De acordo com o estudo, na pandemia, a jornada de trabalho se tornou ainda mais pesada. Para a grande maioria (85,5%), chegou a até 60 horas semanais. "Eles tiveram que substituir colegas afastados ou que faleceram. Muitos viram os colegas morrerem e, mesmo assim, trabalharam adoecidos com medo de não receber o salário", explica Machado.

Segundo a pesquisadora, muitos desses profissionais não têm vínculos com as instituições de saúde que garantam direitos trabalhistas. "São considerados autônomos, mas não têm o lastro social dos médicos, dos enfermeiros, que os permitam trabalhar em um ou dois lugares da área da saúde."

Pouco mais de um quarto dos trabalhadores (25,6%) necessita fazer bicos para sobreviver porque ganha entre um e dois salários-mínimos. "Depois que eles tiram o uniforme da área da saúde, eles se tornam serventes de pedreiro, segurança, porteiro, motorista de aplicativo, babá, faxineira", diz Machado.

Os resultados mostram que 53% dos "invisíveis" da saúde não se sentem protegidos contra a Covid-19 no trabalho. O medo generalizado de se contaminar (23,1%), a falta, escassez e inadequação do uso de EPIs (22,4%) e a ausência de estruturas necessárias para efetuar o trabalho (12,7%) foram mencionados como os principais motivos de desproteção.

Um condutor de ambulância ouvido na pesquisa conta, por exemplo, que é obrigado a usar uma única máscara de proteção durante dois ou três dias, quando o protocolo recomenda que seja trocada de duas em duas horas.

"Os materiais são escassos, temos que usar os mesmos para duas ou três transferências de pacientes com Covid-19. Atualmente, o risco físico é maior ainda porque temos que pegar as macas sozinhos, sem a ajuda que tinha antes. E quando chega o contracheque vemos que nem [o adicional de] insalubridade completa recebemos. O hospital só paga 20%."

Para 54,4% dos trabalhadores ouvidos na pesquisa, houve também negligência na capacitação sobre os processos da Covid-19 e dos procedimentos e protocolos necessários para o uso de EPIs.

Segundo a pesquisadora, 70% reclamam da falta de apoio institucional e 35,5% relatam ter sofrido violência ou discriminação durante a crise sanitária: 36,2% no ambiente de trabalho, 32,4% na vizinhança e
31,5% no trajeto casa-trabalho-casa.

Machado lembra que esses trabalhadores também não foram priorizados na vacinação contra Covid. "A vacinação aconteceu muito depois para os maqueiros dos hospitais, o pessoal da faxina, da limpeza, da desinfecção, os agentes de saúde da família. Algumas categorias tiveram que entrar com mandados de segurança para receber a vacina porque não eram consideradas da saúde e muito menos essenciais."

Os resultados da pesquisa foram apresentados em uma live na noite da última quinta (23) às duas maiores confederações representativas dos trabalhadores da saúde pública e privada, a CNTSS e CNTS.

Para Benedito Augusto, presidente da CNTSS (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Seguridade Social), a pesquisa chama a atenção para o recorte raça e gênero dos trabalhadores. "Temos a senzala da saúde [com mulheres pretas sendo a maioria desse contingente]. Essa pesquisa mostra a cara e a alma das condições de trabalho da saúde no país."

Ele afirma que, em conversas com trabalhadores paulistas sobre as condições de trabalho na pandemia, não foi reivindicação salarial a principal demanda. "Eles tinham medo de morrer, de levar a morte para casa. Essas pessoas se sentem desumanizadas, querem ser enxergadas na sua cidadania."

Para Valdirlei Castagna, presidente da CNTS (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde), os gestores de saúde, os parlamentares e o setor empresarial precisam proteger os profissionais mais vulneráveis e olhar com mais sensibilidade para as reivindicações históricas da categoria.

Ele afirma que a pesquisa apontou práticas, como a hierarquização no uso de EPIs, que são inconcebíveis. "Algumas categorias usam EPIs melhores que as outras. Não dá para ser dessa forma. É um direito de todos independentemente da função."

Para Castagna, embora a pandemia tenha trazido mais visibilidade e reconhecimento da população aos trabalhadores da saúde, é preciso que isso se traduza em atos concretos e objetivos.

Na percepção de muitos trabalhadores da saúde ouvidos na pesquisa, o sentimento é de que não houve um reconhecimento do trabalho durante a crise sanitária por parte dos gestores de saúde. "A maior lição que eu tirei desta pandemia foi que o momento em mais deveríamos ter suporte profissional foi o momento em que mais fomos explorados", afirmou um dos sepultadores entrevistados.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.