Conselho atribui falta de remédios a interesses comerciais e baixo investimento

Desabastecimento atinge sobretudo antibióticos, analgésicos e antialérgicos, segundo levantamento

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São Paulo

O desabastecimento de medicamentos vivenciado por pacientes brasileiros tem causas que ultrapassam as dificuldades impostas pela pandemia de Covid e por mudanças geopolíticas, e é um dos aspectos que o CFF (Conselho Federal de Farmácia) pretende abordar na reunião com o relator do Orçamento de 2023, senador Marcelo Castro (MDB), agendada para esta quarta-feira (23).

O mais recente levantamento sobre o déficit de medicamentos, realizado pelo CFF entre 20 de julho e 6 de setembro com 671 farmacêuticos de todo o país, indica a escassez de antimicrobianos (categoria que engloba os antibióticos), mucolíticos, anti-histamínicos e analgésicos tanto no setor público quanto no privado.

O desabastecimento de antimicrobianos foi apontado por 95,1% dos farmacêuticos, com destaque para a falta de produtos como amoxicilina, metronidazol, claritromicina e azitromicina. Pesquisas anteriores já destacavam a ausência de antibióticos no mercado e o estudo mostra que o problema persiste.

A carência de mucolíticos, classe que reúne expectorantes como acetilcisteína e carbocisteína, foi apontada por 81,2% dos profissionais. A falta de anti-histamínicos (antialérgicos) como loratadina, prednisolona, desloratadina, prednisona, dexametasona e hidroxizina foi relatada por 76% dos entrevistados. E a ausência de analgésicos como morfina ou mesmo ibuprofeno, paracetamol e dipirona foi descrita por 70% dos farmacêuticos.

Amoxicilina aparece em levantamento como um dos medicamentos em falta nas farmácias brasileiras - Daniel Marenco/Folhapress

Segundo Gustavo Pires, secretário-geral do CFF e coordenador do levantamento, a falta de medicamentos usados em casos de gripe e resfriado costuma ser sazonal. Ela é agravada nos meses de inverno, quando o consumo naturalmente aumenta, e ocorre principalmente nos estados do Sul e do Sudeste.

Além disso, há um histórico de priorização dos remédios para adultos. Como o mercado é maior, as indústrias preferem investir nessa população a fabricar produtos para o público infantil, o que contribui para a falta de xaropes, por exemplo.

Outro aspecto, diz Pires, foi o tempo observado para o início da imunização das crianças contra Covid. Suscetíveis à doença, elas demandaram mais medicamentos.

O levantamento revela ainda a falta de itens como antidepressivos, ansiolíticos, anticonvulsivantes, anti-hipertensivos, anestésicos locais, anticoncepcionais e soro fisiológico –este em falta por problemas relacionados à fabricação de embalagens.

Os principais motivos apontados pelos entrevistados para o desabastecimento são escassez de mercado, alta demanda não esperada, falha do fornecedor e preço alto impraticável. Fatores como a Guerra na Ucrânia, a pandemia de Covid e a ausência de matéria-prima não atingiram 1% das respostas.

Em informe técnico divulgado nesta terça-feira (22), o Conselho Regional de Farmácia de São Paulo e a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo tratam das possíveis causas para o problema.

Eles apontam, por um lado, o contexto: fechamento de portos e aeroportos por causa da Guerra na Ucrânia e da pandemia, restringindo o acesso aos princípios ativos majoritariamente importados, aumento nos fretes e reavaliação da produção pelo ponto de vista comercial. Por outro, ressaltam o aumento abrupto da demanda.

Os dados de descontinuação e reativação de fabricação e importação de medicamentos da Anvisa lembram, contudo, que a flutuação da oferta não se restringe aos anos de pandemia.

Em 2018, por exemplo, 1.108 medicamentos foram descontinuados de forma temporária e 882 de forma definitiva no país. Em 2019, esses números saltaram para 1.913 e 1.142, respectivamente.

Entre as possíveis explicações para o movimento do mercado, Pires enumera a aquisição de pequenas indústrias por gigantes do setor e o investimento em produtos mais atualizados ou mais lucrativos.

Ele lembra que a indústria se baseia em alguns fatores para determinar a oferta de remédios no mercado. Um deles é o aspecto comercial. No país, os preços são tabelados pela CMED (Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos) e o reajuste é anual. Se uma indústria considera que o limite de valor expresso na tabela não é financeiramente vantajoso, pode optar por interromper o fornecimento ou estocar o produto. Foi o que aconteceu recentemente com a dipirona injetável.

"O produto ficou armazenado por semanas e o setor começou a pressionar o governo para a tabela CMED ser flexibilizada", afirma Pires. A flexibilização consiste na suspensão do preço máximo para aquisição de medicamentos com risco de desabastecimento no mercado e é válida até 31 de dezembro, meses antes do reajuste anual e coincidindo com a troca de governo.

Nesta quarta (23), a entidade tem uma reunião com o senador Marcelo Castro para tentar garantir mais recursos para o Farmácia Popular em 2023 —o programa tem sido alvo de cortes nos últimos anos
e espera discutir com a equipe de transição formas de amenizar o desabastecimento.

Para o CRF-SP e a secretaria estadual, os gestores podem reduzir o desabastecimento com a compra centralizada, adquirindo volumes maiores de medicamentos e considerando corretamente o tempo de entrega em cada região.

Para a CFF, o caminho passa por investir nas pesquisas científicas no país, retendo e atraindo cientistas; utilizar e otimizar as indústrias oficiais, como o Laboratório Farmacêutico de Pernambuco; e negociar com a Índia e com a China, os grandes fornecedores de princípios ativos, acordos mais vantajosos e que levem em consideração impactos externos.

"Quando a Guerra na Ucrânia começou, vimos o governo se mobilizar para garantir fertilizantes para a agricultura. Não observamos esse mesmo comportamento em relação aos remédios", diz Pires.

"A troca de governo sempre é um momento de esperança. Esperamos que a situação em relação ao abastecimento possa melhorar."

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