Descrição de chapéu refugiados

'Minha filha morreu porque o médico não conseguiu me entender', diz venezuelano

Idioma é barreira para atendimento médico de imigrantes e refugiados, indicam pesquisas

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

"Minha filha, de um ano e dois meses, passou mal com diarreia e vômito. Fui ao hospital e ninguém conseguia entender o que eu falava. Voltei ao abrigo para buscar uma vizinha que falava o idioma [português]. Então, minha filha ficou internada com a mãe dela, e eu fui ver o que a menina tinha. Acho que minha filha morreu porque o médico não conseguiu me entender."

O relato do indígena venezuelano da etnia Warao entrevistado por pesquisadores em um abrigo de Manaus evidencia um dos principais problemas no atendimento a imigrantes e refugiados no Brasil. Segundo uma série de estudos financiados pela OMS (Organização Mundial da Saúde), o idioma está entre os maiores entraves para o atendimento à saúde dessa população.

"É uma barreira para o paciente, que não consegue se expressar, e para o profissional, que não consegue entender e nem explicar o tratamento", diz Sonia Vivian de Jezus, professora da UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso) e uma das coordenadoras das pesquisas.

Posto de saúde de Pacaraima, em Roraima; aumento do fluxo de venezuelanos sobrecarregou sistema de saúde
Posto de saúde de Pacaraima, em Roraima; aumento do fluxo de venezuelanos sobrecarregou sistema de saúde - Henrique Santana - 9.fev.23/Folhapress

Desde 2018, o país reconheceu 57.662 pessoas como refugiadas. A maior parte dos pedidos foi concedida por grave e generalizada violação de direitos humanos, e 81,6% das decisões estão relacionadas a venezuelanos, segundo painel do Acnur, a agência da ONU para refugiados.

Os primeiros resultados do projeto foram publicados na revista científica BMC Infectious Diseases a partir de exames coletados entre 903 imigrantes, 77% deles naturais da Venezuela.

O levantamento indica a alta prevalência de tuberculose latente –quando a bactéria Mycobacterium tuberculosis está presente no corpo e a pessoa pode desenvolver a doença– entre os estrangeiros abrigados em Manaus (46,1% dos participantes), São Paulo (33,3%), Curitiba (28,1%) e Boa Vista (23,5%).

Os números superam os achados de um estudo anterior, que apontou 37% de prevalência de tuberculose latente entre refugiados e pessoas em busca de asilo, com média de 28% para aqueles nas Américas.

Para os pesquisadores, a variação está nas condições socioeconômicas e no país de origem desses imigrantes, já que a tuberculose é uma doença diretamente associada à vulnerabilidade social. Convergem a falta de assistência médica no passado, a situação precária de alguns abrigos brasileiros e o desemprego ao chegar aqui.

Quando os cientistas ampliaram a amostra e realizaram um questionário online, abarcando assim estrangeiros com melhores condições financeiras, as taxas ficaram menos discrepantes, mas ainda assim as incidências foram mais altas.

Nessa etapa, participaram do estudo 553 imigrantes e refugiados da Venezuela, Cuba, Colômbia, Peru, Argentina, Cabo Verde, Marrocos e Estados Unidos. Entre eles, 3,07% declararam ter tuberculose, 28,5% referiram hipertensão e 21,2%, diabetes. Na população brasileira em geral, segundo o estudo, esses números são respectivamente 1%, 24,5% e 7,4%.

Entre as vulnerabilidades, 32% dos participantes referiram desemprego, 37,6% mudaram para o Brasil em decorrência da situação social de seu país e 33,6% residiam em abrigo.

"Precisamos criar intervenções para abarcar essa população. Temos o SUS e a porta está aberta para todos, mas há dificuldades", diz Jezus.

Para entender esses gargalos, na terceira fase, o grupo aplicou um questionário a 106 profissionais de saúde e entrevistou 30 imigrantes venezuelanos da etnia Warao residentes em abrigos de Manaus. Foi assim que constataram o impacto da barreira linguística nos atendimentos. "A maioria deles fala Warao e não tem o espanhol como segunda língua", afirma a pesquisadora.

"A barreira do idioma é um dos principais entraves para o usufruto do acesso aos direitos previstos para a população refugiada", reforça Paulo Sergio Almeida, oficial de meios de vida do Acnur Brasil.

As entrevistas revelaram ainda dificuldades para adquirir medicamentos, na adaptação a alimentos que não pertencem à dieta tradicional e nos deslocamentos para consultas e exames.

"Entrevistei um senhor que teve de pedir o calçado emprestado para um colega do abrigo para poder ir para uma unidade de saúde, porque ele não tinha sapato."

Sonia Vivian de Jezus

Pesquisadora

"A ideia desses estudos é proporcionar subsídios para novas políticas de saúde. Precisamos cuidar dessas pessoas", complementa a pesquisadora. Além dela, outra autora dos estudos é Ethel Maciel, atual secretária de Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério da Saúde.

"As políticas públicas de saúde devem contemplar as necessidades específicas das pessoas refugiadas exatamente na mesma medida em que atendem aos brasileiros conforme suas necessidades, assegurando que a ampla diversidade das pessoas que compõem o nosso país seja contemplada", pondera Almeida.

Apenas na cidade de São Paulo, foram mais de 300 mil atendimentos a pacientes estrangeiros no ano passado, de acordo com Silvana Kamehama, diretora da Divisão de Atenção Primária da Secretaria Municipal da Saúde.

Para ter acesso aos serviços, é imprescindível ter o cartão do SUS, mas não é obrigatório um comprovante de endereço para obter o documento, justamente considerando a situação de pessoas abrigadas e em situação de rua.

Em relação ao idioma, Kamehama afirma que, na região do Brás e do Pari, agentes comunitários bolivianos auxiliam no atendimento à comunidade estrangeira que tem o espanhol como língua materna.

Nos outros casos, é comum amigos e líderes comunitários familiarizados com o português intermediarem o contato. "Não podemos simplesmente colocar um tradutor na consulta. Precisa ser uma pessoa de confiança do paciente."

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.