Descrição de chapéu Projeto Saúde Pública

Pacientes e médicos pedem que SUS ofereça home care para nutrição parenteral

Atendimento domiciliar reduz o risco de infecções e aumenta a qualidade de vida, mas é exceção no sistema público

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São Paulo

Foi com a foto de Cecília nas mãos que Beatriz Gonçalves Pereira e o marido foram algumas vezes à Secretaria Municipal de Saúde e à Prefeitura de Curitiba. Na época, sua filha tinha seis meses e a imagem era uma forma de sensibilizar as autoridades para a necessidade de disponibilizar cuidado domiciliar.

Cecília foi diagnosticada com volvo –quando o intestino dá voltas ao redor dele mesmo, interrompendo o fluxo sanguíneo– aos dez dias de vida. Ela passou por quatro cirurgias e ficou com apenas 30 cm de intestino delgado, configurando o que os médicos chamam de SIC (síndrome do intestino curto). Nessa situação, o aparelho digestivo não tem capacidade de absorver os nutrientes necessários e o paciente precisa de nutrição parenteral, administrada por via endovenosa.

Natural de Pernambuco, Weverton Gomes, 26, mora há seis anos em São Paulo, onde há um programa de nutrição parenteral domiciliar pelo SUS - Danilo Verpa/Folhapress

Na nutrição parenteral, é instalado um cateter e, por meio dele, o paciente recebe uma fórmula composta por glicose, lipídios, aminoácidos, eletrólitos, vitaminas e minerais. Muitos planos de saúde oferecem atendimento domiciliar para usuários que precisam desse tipo de atenção, mas no SUS (Sistema Único de Saúde) são raros os centros de reabilitação intestinal com home care.

Os pais de Cecília ajuizaram uma ação em julho de 2022 e, em setembro, a menina recebeu alta com o suporte de que precisava. O SUS disponibilizou um técnico e um enfermeiro que iam à casa da família às 20h, para iniciar a nutrição, e às 8h, para finalizar, e ela passava a noite recebendo a fórmula.

"Enquanto ela estava internada, teve mais de 15 infecções. Desde que veio para casa, foram três episódios de contaminação", compara a mãe. "Esse atendimento em casa é primordial."

Como grande parte dos pacientes, Cecília reabilitou o intestino e não vai mais precisar da nutrição parenteral. Para Beatriz, a evolução rápida está ligada ao cuidado domiciliar.

Kalyne Ribeiro Torreão também precisou mover uma ação, mas para garantir o atendimento do filho de cinco meses em um centro de referência. Bernardo estava internado em João Pessoa e seu quadro não evoluía. Em dois meses de nutrição parenteral, foram oito infecções. Mesmo assim, ele era o 33o na lista de espera por atendimento em um local especializado.

Ela conta que a família pediu orçamento a um hospital em São Paulo e o custo do atendimento, para um período de seis meses, era de R$ 1,9 milhão. O estado da Paraíba, porém, conseguiu uma vaga no Hospital Pequeno Príncipe, em Curitiba. Bernardo ganhou peso, pôde trocar a nutrição parenteral pela enteral (administrada por uma sonda que é ligada ao estômago ou ao intestino) e em 45 dias teve alta.

"Quando voltamos para João Pessoa, ele ainda era o 11o da fila", conta Kalyne. "A demanda é muito alta e há poucos serviços especializados."

Segundo Tadeu Thomé, coordenador do projeto Transplantar, do Hospital Sírio-Libanês, a procura pela reabilitação intestinal no país deveria ser ainda maior. Considerando a média de incidência de falência intestinal de outros países, o Brasil teria entre 400 e 600 casos pediátricos por ano, mas muitos pacientes não são diagnosticados ou morrem à espera de tratamento.

No Transplantar, diz Thomé, há sempre fila de espera. A iniciativa faz parte do Proadi (Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do SUS), modelo em que hospitais de referência recebem recursos do Ministério da Saúde para compartilhar expertise com a rede pública. No caso do Sírio, a parceria é com o Hospital Municipal Infantil Menino Jesus, em São Paulo.

O programa começou em 2016 e, desde então, soma 97 crianças atendidas. Dessas, 43 permanecem em tratamento domiciliar. Elas recebem diariamente as bolsas de nutrição já preparadas e a visita de uma enfermeira que acompanha a instalação. Além disso, a família recebe treinamento para identificar precocemente sinais de infecção e há um acompanhamento multidisciplinar.

O Menino Jesus e o HCPA (Hospital de Clínicas de Porto Alegre) são os únicos no sistema público que oferecem o atendimento domiciliar para crianças com falência intestinal.

Na capital gaúcha, o Prica (Programa de Reabilitação Intestinal de Crianças e Adolescentes) foi iniciado em 2014, como um projeto para testar a viabilidade técnica de oferecer home care pelo SUS.

Pelo modelo, são firmados contratos com empresas responsáveis pela produção e entrega das bolsas e é estabelecida uma parceria com enfermeiras da cidade de origem do paciente, o que permite atender não apenas no Rio Grande do Sul. Atualmente, o projeto tem crianças sendo acompanhadas também no Paraná e em Santa Catarina.

Com mais de 80 pacientes atendidos, a coordenadora do Prica, Helena Goldani, não tem dúvida de que é possível ampliar o formato. "Estamos terminando um levantamento da prevalência dos pacientes pediátricos com intestino curto no Brasil, para entender quantos são e onde estão, e a partir disso esperamos que o Ministério da Saúde decida abrir novos centros."

Além da socialização, da reintegração familiar e da melhora na qualidade de vida, a gastropediatra ressalta que a nutrição parenteral domiciliar reduz os custos com internação.

O impacto financeiro é um dos argumentos utilizados por Weverton Gomes para defender a manutenção do programa de reabilitação intestinal domiciliar do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, o único do país voltado a adultos.

No início do ano, ele e outros pacientes foram às redes sociais e buscaram a imprensa para compartilhar o medo de que o programa fosse encerrado. Nesse caso, todos teriam de permanecer internados no hospital. "Muitas pessoas trabalham, têm filhos e perdemos tudo isso sem o tratamento domiciliar", afirma.

Weverton foi diagnosticado com apendicite em 2015. Após a cirurgia de retirada do apêndice, começou a apresentar inchaço intestinal, sangramentos e vômitos. Ao voltar para a sala de cirurgia, os médicos descobriram que 90% de seu intestino delgado havia necrosado.

Weverton passou por transplante de intestino, mas houve rejeição do órgão e desde então ele depende da nutrição parenteral - Danilo Verpa/Folhapress

Após uma campanha de financiamento coletivo, ele realizou um transplante de intestino nos Estados Unidos, porém houve rejeição. "Eu sou de Pernambuco e, depois que perdi o órgão, tive de ficar aqui em São Paulo porque só aqui há o tratamento de parenteral domiciliar."

Uma vez por semana ele vai ao hospital fazer a troca do curativo do cateter e, uma vez por mês, tem consultas com nutrólogos e nutricionistas para pesagem e possíveis ajustes na fórmula. Ele também é acompanhado por endocrinologista e gastroenterologista.

"Faço 16 horas de nutrição por dia, então fico um período de oito horas livre", conta o rapaz de 26 anos, que com a ajuda da tecnologia consegue manter a rotina de trabalho remoto. "Tenho uma noiva e ela é da minha cidade. Ela vem para cá, passa alguns dias e depois ficamos meses longe. Espero casar e trazê-la para cá porque é difícil, a distância machuca."

Em nota, o HCFMUSP afirma que o programa, custeado por um convênio com o Ministério da Saúde, foi prorrogado por mais um ano e que os 14 pacientes beneficiados seguem em acompanhamento.

Próximos passos

A necessidade de ampliar os atendimentos esbarra em algumas dificuldades. Uma delas é a falta de protocolos para síndrome do intestino curto e reabilitação intestinal, menciona Sandra Fernandes, diretora da Abran (Associação Brasileira de Nutrologia). No dia 21 de novembro, ocorrerá uma audiência na Câmara dos Deputados justamente para discutir o amparo ao paciente com SIC.

Outro empecilho era a falta de regulamentação, pelo Cofen (Conselho Federal de Enfermagem), para a capacitação de familiares de crianças e adolescentes com nutrição parenteral domiciliar. Mas recentemente a entidade emitiu parecer favorável ao treinamento.

O compartilhamento do conhecimento é fundamental para minimizar os riscos. "É um procedimento muito invasivo porque há necessariamente um cateter colocado num acesso venoso profundo. Se não houver um processo de higiene, há grande risco de infecção, trombose", explica Sérgio Henrique Loss, nutrólogo do Hospital Moinhos de Vento.

Além disso, é preciso haver uma equipe multidisciplinar para acompanhar os pacientes e a garantia de que a fórmula será corretamente produzida e entregue.

O Ministério da Saúde afirma que elaborou uma proposta para reforçar a atenção domiciliar na reabilitação intestinal no SUS, de forma a fortalecer e assegurar o acesso à assistência e ao tratamento adequado na rede pública. A pasta diz que o plano deverá ser submetido aos gestores municipais e estaduais nas próximas semanas.

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