A capa do jornal satírico francês Charlie Hebdo desta semana causou celeuma na mídia e nas redes sociais do país-sede da Copa do Mundo feminina de futebol.
O desenho na primeira página do número que circula desde quarta (12) mostra uma vulva em primeiro plano. Na região do clitóris, há uma bola de futebol.
A legenda diz “Copa do Mundo feminina: vamos ter que engolir durante um mês”. O verbo usado, “bouffer”, tem duplo sentido: é usado na França também como equivalente chulo de “transar”.
Muitos internautas e comentaristas de programas de TV viram no cartum, além de mau gosto, misoginia.
“As mulheres, essas vaginas sobre patas”, escreveu a historiadora e jornalista Mona Chollet em publicação em uma rede social na qual reproduziu a imagem.
A ativista feminista Fatima Benomar disse que o desenho “reduz as mulheres ao seu entrepernas” e dá à equipe do Charlie uma aura subversiva quando, na verdade, “eles nos impõem mais uma vez a sexualização gratuita das esportistas, que já ouvem todo dia comentários libidinosos”.
Outras pessoas avaliam que o cartum se insere em uma tradição longeva do semanal de crítica ao futebol, visto na redação como instrumento de alienação das massas.
Nessa linha, em 1998, ano em que a França acolheu (e ganhou) a Copa do Mundo masculina, o jornal publicou uma edição especial com a seguinte manchete: “O horror futebolístico”.
Ao longo das páginas, atacava-se a instrumentalização política do esporte, o hooliganismo, a corrupção e o doping, entre outras mazelas.
Outras capas do Charlie tiveram como alvo jogadores acusados de fazer sexo com menores de idade; o técnico da seleção francesa na Copa de 2010, quando o país foi eliminado já na primeira fase (“Obrigado!”, estampava o título sobre a caricatura de Raymond Domenech); e o atacante campeão em 2018 Antoine Griezmann, retratado com as formas de um vibrador diante de um casal de torcedores embevecidos.
No editorial do número atual, o desenhista Riss escreve: “Sempre criticamos duramente este esporte tentacular, presente todos os dias na mídia para nos distrair de coisas mais essenciais. Não há razão para que, com o futebol feminino, que nos é vendido agora como um novo sabão em pó, a posição do Charlie Hebdo seja diferente”.
Na sequência, critica a hipermercantilização da modalidade e lembra a falta de sensibilidade da Fifa e dos comitês organizadores de Copas masculinas a contextos regionais (a ditadura argentina em 1978 e as condições de trabalho dos operários nos canteiros dos estádios do Qatar, sede em 2022).
E dispara: “O futebol feminino também precisará contribuir para o emburrecimento das multidões para ser levado a sério e considerado equivalente ao masculino? [...] É triste ver que a ambição do futebol feminino é ficar tão estúpido, vulgar e cínico quanto o masculino.”
Célebre pelo teor ácido de seus desenhos e textos e pela defesa intransigente da laicidade, o Charlie foi alvo, em janeiro de 2015, de um atentado terrorista.
Os irmãos Chérif e Saïd Kouachi invadiram a sede do jornal durante uma reunião da equipe e mataram a tiros 11 pessoas. Uma 12ª morreria nos arredores do prédio, durante a fuga dos criminosos.
O ataque foi reivindicado dias depois por um braço da Al Qaeda no Iêmen.
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