Descrição de chapéu Bola de Chumbo

Dupla de esquerda da seleção chilena desafiou ditadura de Pinochet

Carlos Caszely e Leonardo Véliz, ídolos do Colo-Colo, eram contrários ao regime

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Leonardo Véliz estava dormindo quando foi acordado por sua mulher, pouco antes do meio-dia. "Leonardo, estão bombardeando La Moneda", disse ela, assustada.

O então meio-campista do Colo-Colo se levantou e foi buscar as notícias que reportavam, de fato, um bombardeio ao palácio presidencial do Chile. Era 11 de setembro de 1973, dia do golpe militar liderado pelo general Augusto Pinochet que tirou do poder o socialista Salvador Allende.

Colo-Colo, vice da Libertadores de 1973, com Carlos Caszely, o primeiro agachado à esq., e Leonardo Véliz, o último agachado à dir.
Colo-Colo, vice da Libertadores de 1973, com Carlos Caszely, o primeiro agachado à esq., e Leonardo Véliz, o último agachado à dir. - Conmebol/Divulgação

Véliz e outros jogadores chilenos estavam convocados para a seleção do país, que enfrentaria 15 dias depois do golpe a União Soviética, no primeiro jogo da repescagem para a Copa do Mundo de 1974, na Alemanha Ocidental. Nesse dia, inclusive, deveriam se apresentar para a concentração.

Os confrontos entre chilenos e soviéticos são tema do terceiro episódio do podcast Bola de Chumbo, que a Folha ​publica nesta sexta-feira (22).

"Alguns companheiros conseguiram chegar ao lugar da concentração, em Juan Pinto Durán. Eu não consegui. Era muito perigoso, porque os militares disparavam por qualquer coisa. Havia franco-atiradores também. Não era aconselhável sair na rua", conta Leonardo Véliz, hoje com 74 anos, à Folha.

Partidário da Unidad Popular, coalização de esquerda que levou Salvador Allende à presidência, em 1970, o jogador tinha a companhia, no Colo-Colo e na visão política, do atacante Carlos Caszely.

Ambos estavam convocados para os duelos contra os soviéticos, que à época viviam sob um regime comunista autoritário. Na ida para Moscou, palco do jogo de ida, Véliz e Caszely não sabiam, mas estavam sendo vigiados de perto pelo governo.

"Os civis que foram com a gente eram guardas, gente de segurança, porque havia temor de que pudéssemos sofrer algum atentado onde estivéssemos. Isso nós soubemos depois", diz o meio-campista.

"Não se esqueça de que na ditadura, eu e Caszely fomos os únicos futebolistas que nos manifestamos publicamente contra o ditador. Nos amparamos no fato de sermos futebolistas famosos, do time mais popular do Chile, que é o Colo-Colo", afirma o atleta.

Figurinha de Carlos Caszely (esq.) e Leonardo Véliz (dir.) no álbum da Copa do Mundo de 1974
Figurinha de Carlos Caszely (esq.) e Leonardo Véliz (dir.) no álbum da Copa do Mundo de 1974 - Reprodução

Outras personalidades da sociedade chilena não tiveram a mesma sorte. O caso mais emblemático é o do cantor Victor Jara. Membro do Partido Comunista, ele foi assassinado cinco dias após o bombardeio do palácio de La Moneda.

Integrantes e simpatizantes dos partidos que formavam a coalização de esquerda da Unidad Popular passaram a ser perseguidos pelos militares. O número de presos atingiu números tão altos que o regime começou a utilizar o Estádio Nacional de Santiago para abrigar os detidos.

O local, inclusive, abrigaria agora em 2019 a primeira final única da Copa Libertadores, mas a decisão foi levada para Lima depois que protestos populares tomaram conta do Chile no último mês

Foi naquele ambiente de repressão que a seleção, após empatar sem gols em Moscou, recebeu os soviéticos para o duelo de volta. A essa altura, no dia 21 de novembro, o Estádio Nacional já estava maquiado e sem os prisioneiros, em uma tentativa de mostrar ao mundo uma outra cara.

Os chilenos, tanto os atletas como o governo, só não contavam que a União Soviética iria se recusar a jogar aquela partida. Contrários ao regime ditatorial de Pinochet, solicitaram à Fifa que o confronto fosse realizado em campo neutro, pedido negado pela entidade máxima do futebol. Como forma de retaliação política, se recusaram a viajar para Santiago.

"Nós soubemos um dia antes, quando estávamos concentrados em Viña del Mar, que os russos não viriam", lembra Véliz.

A Fifa obrigou que, mesmo sem os soviéticos, os chilenos deveriam se apresentar à partida e entrar em campo. Mais do que isso, a entidade forçou a equipe a dar o pontapé inicial e tocar a bola até fazer o gol na meta adversária. Foi o que os sul-americanos fizeram, terminando no "gol fantasma" do capitão Francisco Valdés.

O escritor uruguaio Eduardo Galeano classificou o jogo, que garantiu o Chile no Mundial de 1974, como "a partida mais patética da história do futebol".

"Chegamos ao estádio [Nacional] e não te minto quando digo que os fantasmas voavam, pululavam nesse estádio, porque sabia que nesse vestiário houve tantos prisioneiros políticos por pensarem distinto e que muitos foram torturados ou fuzilados", diz Leonardo Véliz.

O ex-jogador teve um primo e um tio presos no estádio e ia frequentemente até o local perguntar aos guardas, que o conheciam do Colo-Colo, clube mais popular do país, se seus parentes ainda estavam vivos.

Soldado chileno com metralhadora e, ao fundo, torcedores nas arquibancadas do Estádio Nacional
Soldado chileno com metralhadora e, ao fundo, torcedores nas arquibancadas do Estádio Nacional - Reuters

Carlos Caszely, seu companheiro de clube e seleção, também sofreu com a perseguição familiar.

Já em 1974, às vésperas da Copa do Mundo na Alemanha Ocidental, Augusto Pinochet convidou a delegação chilena para se despedir dos atletas. O ditador foi cumprimentando um por um, até que chegou em Caszely, que se recusou a apertar a mão do general.

Com o atacante em solo alemão, o regime sequestrou sua mãe e a torturou durante um dia inteiro. Caszely só soube disso quando retornou do Mundial.

Ex-técnico das seleções de base do Chile e comentarista de TV, Leonardo Véliz voltou muitas vezes ao Estádio Nacional. Estima-se que ali, embaixo das arquibancadas do estádio, cerca de 400 presos políticos foram assassinados.

"Com relação ao Estádio Nacional, eu sinto as duas coisas: fui campeão ali, dei uma alegria ao povo. Mas eu não me esqueço da outra parte, e essa outra parte não poderá ser apagada da história do Chile. O futebol é tão generoso que até quando a morte circula ao seu redor, a bola de futebol te protege. Isso aconteceu com a gente", completa Véliz.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.