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Michael Jordan decide exaltar legado em meio à era de LeBron James

Com participação do astro dos Bulls na produção, série enfatiza a sua grandeza

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Sopan Deb
The New York Times

Michael Jordan aparentemente tem tudo. Derrotou praticamente todos os seus inimigos, como jogador. Teve grandeza individual. Grandeza coletiva. Uma imensa grandeza empresarial.

Assim, por que, depois de todos esses anos, Jordan, que raramente concede entrevistas, concordaria em tomar parte de uma longa série de documentários que relata sua era no Chicago Bulls?

Ele se preocupa com seu legado.

O que emerge de “The Last Dance”, uma série documental em 10 episódios produzida por Netflix, ESPN e Jordan que estreou nos EUA na noite de domingo (19), representa uma extensa defesa da carreira do jogador, em um momento no qual muita gente está considerando as contribuições do melhor jogador de basquete do século 21, LeBron James.

Pelo menos nos oito episódios a que a ESPN permitiu que jornalistas assistissem.

Na segunda-feira (20), a ESPN informou que os dois primeiros episódios, transmitidos nos EUA no domingo, registraram média de 6,1 milhões de espectadores, nos canais ESPN e ESPN2, fazendo do programa o documentário de maior audiência na história da rede. No Brasil, a série está disponível na Netflix.

Basta considerar o debate mais contencioso da história da NBA, que a série está reativando, intencionalmente ou não.

Jordan ou James? Quem é o melhor jogador de todos os tempos? Seis títulos ou três? Ah, mas Jordan não teria conseguido o que conseguiu sem a ajuda de Scottie Pippen, e jogou em um período no qual a liga oferecia menos qualidade. Tudo bem, mas LeBron não teria conseguido sem Dwyane Wade e Chris Bosh. E a liga é fraca, agora. Não, agora a liga é mais forte! Jordan jamais derrotou um time tão bom quanto o Golden State Warriors de 2015! É, mas Jordan não perdeu para o Dallas Mavericks de 2011.

Jordan ouve essa discussão com muita clareza, mesmo que não participe dela publicamente.

“Acho que ele deixou sua marca”, disse Jordan sobre James em uma entrevista coletiva em janeiro. “E continuará a deixá-la por ainda algum tempo. Mas se o caso é comparar, acho que as coisas são o que elas são. As pessoas estão medindo coisas que talvez não sejam comparáveis. Eu encaro a coisa com cautela. Ele é um tremendo jogador de basquete, sem qualquer dúvida."

Mas o momento em que Jordan aceitou cooperar com o produtor Mike Tollin na produção da série é um dado relevante. Como Tollin revelou em um artigo para o The New York Times na semana passada, a cooperação de Jordan, que participou do documentário e liberou o uso de imagens mantidas em sigilo por muito tempo, surgiu no exato dia em que James e o Cleveland Cavaliers estavam celebrando sua conquista do título da NBA em 2016. Encarar a coisa com cautela é isso.

LeBron James nas comemorações do título do Cleveland Cavaliers em 2016
LeBron James nas comemorações do título do Cleveland Cavaliers em 2016 - Aaron Josefczyk - 22.jun.16/Reuters

“Viajei para Charlotte à noite para uma reunião. De manhã, liguei a TV na ESPN enquanto me vestia e lá estava a parada dos Cavaliers na rua, no momento em que eu me dirigia ao encontro com Michael”, disse Tollin sobre sua primeira reunião pessoal com Jordan e os assessores de negócios dele, Estee Portnoy e Curtis Polk. “Ele disse sim ainda durante a reunião, o que acontece raramente no meu ramo."

Talvez seja coincidência. Mas Jordan administra sua imagem com grande cuidado. Um documentário, em teoria, sempre oferece um retrato objetivo sobre uma pessoa ou sobre o tema de que trata. Mas “The Last Dance” não funciona assim.

A produtora de Michael Jordan, Jump 23, é sócia do projeto. Adam Silver, o comissário da NBA e presidente da NBA Entertainment na década de 1990, disse à ESPN que a condição para permitir que equipes de filmagem da ESPN acompanhassem o Bulls na temporada de 1997-1998 havia sido que nenhuma das imagens obtidas fosse utilizada sem a permissão de Jordan. Ou seja, muito pouco do material usado para o documentário poderia ser descrito como “objetivo”.

Sam Smith, um veterano jornalista que cobria a NBA e escreveu um retrato crítico de Jordan no livro “The Jordan Rules”, de 1992, na semana passada publicou uma entrevista na qual perguntava a Jason Hehir, o diretor dos documentários, se ele tinha pedido a permissão de Jordan para entrevistar Smith para “The Last Dance”.

Smith escreveu: “O diretor enrolou um pouco e respondeu, com alguma timidez, que sim, tinha perguntado a Jordan se podia me entrevistar”. Segundo o relato de Smith, o diretor revelou que Jordan lhes disse que não se importava que a equipe falasse com qualquer fonte. “Isso é Michael sendo Michael”, comentou Smith.

Mesmo que Jordan tenha aprovado entrevistas com qualquer pessoa, era evidente que obter sua aprovação preocupava a equipe, se o que o Smith disse procede. (Um porta-voz da ESPN informou que Jordan não aprovou pessoalmente a lista das pessoas entrevistadas.)

A coisa me lembrou o vídeo viral que mostrava Jordan e Tom Brady jogando basquete com outras pessoas não identificadas, em 2015 nas Bahamas.

“Ei, cara, você ainda tem o YouTube?”, disse Jordan, que tinha passado há pouco tempo dos 50 anos, ao fazer um “jumper” impecável diante de um dos defensores. “Pesquisa lá sobre Michael Jordan”.

Jordan em entrevista coletiva durante as finais da NBA em 1998
Jordan em entrevista coletiva durante as finais da NBA em 1998 - Daniel Lippitt - 8.jun.98/AFP

É isso que “The Last Dance” representa: Jordan está nos lembrando de quem ele é, ou foi, no momento em que o legado de James começa a ser definido. Não só como jogador de basquete, mas em termos culturais. Um documentário sobre a carreira de James atrairia comentários de diversos ex-presidentes e de tantas celebridades?

Quando são descritas situações desagradáveis em que colegas de time de Jordan foram apanhados, entre as quais uso de drogas, Jordan e a equipe de documentário sempre deixam claro que ele não estava envolvido. Como Jordan mesmo diz, ele não ia a casas noturnas; não fumava e nem bebia (na época, ele diz, embora durante algumas das entrevistas haja um copo que parece ser de bourbon posicionado ao seu lado).

“Eu me interessava só por repousar sempre que podia, e depois sair da cama e ir para o jogo”, afirma Jordan. Em outras palavras, ele parece estar dizendo que todo mundo deveria ser como ele.

Isso é proposital. O documentário é um produto para Jordan. E Jordan não afixa a sua marca a qualquer coisa que não o beneficie pessoalmente.

Ele mesmo admite isso.

“Você sempre pode emprestar seu nome para alguma coisa, mas a maior parte das coisas que faço —praticamente todas elas— são muito autênticas em termos do meu envolvimento”, ele disse à revista Cigar Aficionado em 2017, depois de aprovar a realização do documentário.

“Não quero só emprestar meu nome a um produto. Porque, em última análise, esse produto sempre representará meu DNA. Por isso gosto de ter algum interesse, gosto de ter alguma contribuição, gosto de ter alguma participação. Não existe nada que chegue ao mercado com o meu nome que não seja fiscalizado por nós, cuidado por nós."

Isso não significa que “The Last Dance”, embora hagiográfico, deixe de ter momentos atraentes. A série é efetiva ao enfatizar que Jordan é um dos maiores atletas da história do planeta, caso alguém tenha esquecido. Mas parece que a pessoa mais interessada em nos lembrar disso é Jordan mesmo.

Tradução de Paulo Migliacci

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