Diante do racismo, não temos tempo para titubear. Insultos raciais, como o sofrido por Neymar no último domingo (13), são atos de racismo. Reduzir a ofensividade do ato racista pelo histórico de Neymar na questão implica entender que a raça seria uma performance individual, menos ou mais grave a depender de quem estamos falando. Não é.
Se estrutural o concebermos, o racismo corta peles negras sejam elas quem forem. Quem dera fosse permitido aos negros serem indivíduos tão distintos entre si como brancos o são. Indivíduos distintos, mas unidos pelas linhas raciais que nos separam do privilégio.
Ao se tornar negro diante do racismo, quer dizer, ao assumir sua negritude de forma relutante ao longo de sua carreira, Neymar exemplifica o que o pensador negro W.E.B. Du Bois chamou em 1903 de “dupla consciência”: “essa sensação de sempre se olhar através dos olhos dos outros, de medir a própria alma pela metragem de um mundo que o olha com desprezo e piedade”, escreve Du Bois em “As Almas do Povo Negro”.
Negro sendo em posição vantajosa num mundo onde o poder é branco, Neymar vive neste estado duplo: ao retirar as máscaras brancas do privilégio, ainda resta a pele negra alvo de racismo.
Nessa duplicidade, torna-se Neymar negro. “Eu sou negro. Filho de negro. Neto e bisneto de negro. Tenho orgulho e não me vejo diferente de ninguém”, afirmou.
Ao fazê-lo, Neymar me lembra Neuza Santos Souza, que lista no livro “Torna-se Negro” as estratégias que negros usam para lidar com a ascensão social, seja buscar ser o melhor para ser aceito, seja aceitar a mistificação de uma democracia racial ao minimizar sua cor, negar tradições negras, ou não falar sobre racismo. O paradoxo é que, mesmo com essas estratégias, torna-se negro num mundo racista contra o qual devemos lutar.
A relutância de Neymar em apoiar abertamente protestos antirracistas, como o fizeram os jogadores da NBA e o piloto Lewis Hamilton, evidencia o incômodo de Neymar em reconhecer seu lugar na luta antirracista.
O pedido de Neymar para que se “pacifique o movimento ‘antirracismo’” diante da crescente retórica conservadora contra protestos parece refletir confiança num pós-racialismo, crença segundo a qual diante do progresso racial não precisamos engajar mais em remediar racismo ou falar dele.
Em 2017, na ONU, Neymar disse, em tom pós-racialista, “[racismo] acontece no futebol, mas está ocorrendo menos, as pessoas estão mudando. Somos todos iguais, não importa a cor”.
No esporte e fora dele, antirracismo não é uma identidade performaticamente construída em likes, mas uma luta coletiva. Combater racismo pressupõe um duplo esforço: de um lado, trabalhar na desconstrução das armadilhas que a branquitude nos colocou na mente ao impedir que nos reconhecêssemos como negros; e, de outro, direcionar nossa mira para as estruturas de privilégio que mantêm o gramado negro e a sala da presidência dos clubes branca.
Se a seleção brasileira é a pátria de chuteiras, essa nação mítica é tão marcada pelo racismo quanto o Brasil que veste nos pés. Racismo está ali no começo do esporte, “vindo da Inglaterra, trazido por Charles Miller, em 1895, para uma elite branca”, nos lembra o ex-jogador negro Aranha, onde negros eram barrados, abertamente ou não.
No esporte, negros experimentam, na derrota, a culpabilização, e, na vitória, a heroicização. Exemplificam isso as derrotas nas Copas de 1950 —que caiu sobre os ombros do goleiro negro Barbosa– e de 1954 —que foi atribuída pelo chefe da delegação brasileira ao estilo e fisionomia de jogadores negros.
Tal como na pátria que representa, negros são respeitados no esporte quando e na medida em que servem à branquitude que domina os clubes e federações. O esporte, cuja seleção é composta em sua maioria por jogadores que cresceram distantes do pai biológico, é comandado por dirigentes brancos. Há mais técnicos estrangeiros do que negros, e árbitros negros são poucos. Disparidade de salário para jogadoras negras expõe a intersecção de raça e gênero nas desigualdades no esporte.
Protestos antirracistas no esporte incomodam –a ponto de fazer atletas que se posicionam contra o racismo perderem tudo (vide Angelo na ginástica e Kaepernick no futebol americano), porque falar de racismo no esporte faz dirigentes confrontarem seu próprio lugar de privilégio nos mandos e desmandos dentro e fora dos campos.
Ser antirracista diante de Neymar passa por, numa toada só, expor o profundo racismo do ato contra ele, navegar as ambivalências de tornar-se negro em espaços de poder e criticá-lo por não investir na luta coletiva que, com ou sem ele, quer um mundo onde máscaras não precisem ser usadas e possamos estar em todos os espaços, como iguais, no gramado e na sala da presidência dos clubes.
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