Descrição de chapéu

Neymar faz bem ao assumir negritude, mas erra ao titubear na luta antirracista

É preciso navegar as ambivalências de tornar-se negro em espaços de poder

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Diante do racismo, não temos tempo para titubear. Insultos raciais, como o sofrido por Neymar no último domingo (13), são atos de racismo. Reduzir a ofensividade do ato racista pelo histórico de Neymar na questão implica entender que a raça seria uma performance individual, menos ou mais grave a depender de quem estamos falando. Não é.

Se estrutural o concebermos, o racismo corta peles negras sejam elas quem forem. Quem dera fosse permitido aos negros serem indivíduos tão distintos entre si como brancos o são. Indivíduos distintos, mas unidos pelas linhas raciais que nos separam do privilégio.

Neymar encara o adversário de perto, com o dedo levantado
Neymar confronta Álvaro Gonzalez, a quem acusa de ter o chamado de macaco - Franck Fife - 13.set.20/AFP

Ao se tornar negro diante do racismo, quer dizer, ao assumir sua negritude de forma relutante ao longo de sua carreira, Neymar exemplifica o que o pensador negro W.E.B. Du Bois chamou em 1903 de “dupla consciência”: “essa sensação de sempre se olhar através dos olhos dos outros, de medir a própria alma pela metragem de um mundo que o olha com desprezo e piedade”, escreve Du Bois em “As Almas do Povo Negro”.

Negro sendo em posição vantajosa num mundo onde o poder é branco, Neymar vive neste estado duplo: ao retirar as máscaras brancas do privilégio, ainda resta a pele negra alvo de racismo.

Nessa duplicidade, torna-se Neymar negro. “Eu sou negro. Filho de negro. Neto e bisneto de negro. Tenho orgulho e não me vejo diferente de ninguém”, afirmou.

Ao fazê-lo, Neymar me lembra Neuza Santos Souza, que lista no livro “Torna-se Negro” as estratégias que negros usam para lidar com a ascensão social, seja buscar ser o melhor para ser aceito, seja aceitar a mistificação de uma democracia racial ao minimizar sua cor, negar tradições negras, ou não falar sobre racismo. O paradoxo é que, mesmo com essas estratégias, torna-se negro num mundo racista contra o qual devemos lutar.

A relutância de Neymar em apoiar abertamente protestos antirracistas, como o fizeram os jogadores da NBA e o piloto Lewis Hamilton, evidencia o incômodo de Neymar em reconhecer seu lugar na luta antirracista.

O pedido de Neymar para que se “pacifique o movimento ‘antirracismo’” diante da crescente retórica conservadora contra protestos parece refletir confiança num pós-racialismo, crença segundo a qual diante do progresso racial não precisamos engajar mais em remediar racismo ou falar dele.

Em 2017, na ONU, Neymar disse, em tom pós-racialista, “[racismo] acontece no futebol, mas está ocorrendo menos, as pessoas estão mudando. Somos todos iguais, não importa a cor”.

No esporte e fora dele, antirracismo não é uma identidade performaticamente construída em likes, mas uma luta coletiva. Combater racismo pressupõe um duplo esforço: de um lado, trabalhar na desconstrução das armadilhas que a branquitude nos colocou na mente ao impedir que nos reconhecêssemos como negros; e, de outro, direcionar nossa mira para as estruturas de privilégio que mantêm o gramado negro e a sala da presidência dos clubes branca.

Se a seleção brasileira é a pátria de chuteiras, essa nação mítica é tão marcada pelo racismo quanto o Brasil que veste nos pés. Racismo está ali no começo do esporte, “vindo da Inglaterra, trazido por Charles Miller, em 1895, para uma elite branca”, nos lembra o ex-jogador negro Aranha, onde negros eram barrados, abertamente ou não.

No esporte, negros experimentam, na derrota, a culpabilização, e, na vitória, a heroicização. Exemplificam isso as derrotas nas Copas de 1950 —que caiu sobre os ombros do goleiro negro Barbosa– e de 1954 —que foi atribuída pelo chefe da delegação brasileira ao estilo e fisionomia de jogadores negros.

Tal como na pátria que representa, negros são respeitados no esporte quando e na medida em que servem à branquitude que domina os clubes e federações. O esporte, cuja seleção é composta em sua maioria por jogadores que cresceram distantes do pai biológico, é comandado por dirigentes brancos. Há mais técnicos estrangeiros do que negros, e árbitros negros são poucos. Disparidade de salário para jogadoras negras expõe a intersecção de raça e gênero nas desigualdades no esporte.

Protestos antirracistas no esporte incomodam –a ponto de fazer atletas que se posicionam contra o racismo perderem tudo (vide Angelo na ginástica e Kaepernick no futebol americano), porque falar de racismo no esporte faz dirigentes confrontarem seu próprio lugar de privilégio nos mandos e desmandos dentro e fora dos campos.

Ser antirracista diante de Neymar passa por, numa toada só, expor o profundo racismo do ato contra ele, navegar as ambivalências de tornar-se negro em espaços de poder e criticá-lo por não investir na luta coletiva que, com ou sem ele, quer um mundo onde máscaras não precisem ser usadas e possamos estar em todos os espaços, como iguais, no gramado e na sala da presidência dos clubes.

Thiago Amparo é advogado e professor de políticas de diversidade na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve na Folha sobre direitos humanos e discriminação

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.