Descrição de chapéu
Maradona (1960-2020)

Diego Maradona era artista e guerreiro; em troca exigiram sua eternidade

Muitos buscaram diferenciar o craque do personagem, como se isso fosse possível

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Ezequiel Fernandez Moores
Buenos Aires

"E o que você pode esperar de um país cujo ídolo é alguém como Maradona?". Meu colega e amigo, filho de um primeiro mundo mais rico, me perguntou isso com raiva em um jantar em 2010 em Joanesburgo. Diego era técnico de uma Argentina que havia sido humilhada pela Alemanha, em um 4 a 0 lapidário na Copa do Mundo da África do Sul.

Hoje, com a Argentina de luto por três dias, e até mesmo seus críticos chorando por ele, talvez o colega compreenda o valor dos ídolos populares, aqueles que trazem felicidade a seus povos e ganham dinheiro à vista de todos.

"O futebol morreu", diz o apresentador de TV, que soube da morte de Diego Maradona. Nas costas dele, "o capitão" (como gostava de ser chamado pelos seus colegas) aparece nos ombros de um companheiro, levantando a taça da Copa do México em 86, que parece tocar o céu.

“Era uma de suas fotos favoritas”, diz o jornalista Daniel Arcucci, biógrafo de Maradona, também chocado com a notícia, e lembrando de uma frase que o jogador disse a seus familiares durante uma íntima comemoração da véspera de Natal em 2015, quando Diego pegou um microfone e afirmou: “É Diego Armando Maradona. O homem que marcou dois gols contra os ingleses e um dos poucos homens da Argentina que sabe quanto pesa uma taça da Copa do Mundo”.

A partir daí, o amor foi selado. Não foram só os gols e a taça. Foi também a dedicação, a paixão. Porque Diego era um artista, mas também um guerreiro. Em troca, é claro, exigiram sua eternidade.

Algumas semanas atrás, quando a enésima ambulância deixou o enésimo hospital pela enésima recaída, os fãs correram acompanhando o veículo portando sinalizadores como acontece na Copa do Mundo. Dentro da ambulância havia um paciente moribundo.

Curiosamente, a última imagem dele vivo foi oferecida pelo portal de notícias Infobae. A matéria disse que os médicos pediram para deixá-lo tranquilo. A foto havia sido obtida com um drone que invadiu a privacidade de sua residência em Nordelta, subúrbio de Buenos Aires, onde morreu nesta quarta (25), notícia inesperada, mas não surpreendente. E em tempos de pandemia, quando futebol não é futebol, se não tem gente para encher os estádios.

Uma vez perguntei a um colega indiano por que protestos populares também haviam sido registrados em seu país quando Diego foi expulso da Copa do Mundo de 94 por doping . "Porque no México em 86 ele se tornou nosso primeiro herói da televisão em cores", respondeu-me.

Telê Santana, grande treinador do Brasil, me disse novamente que aquela Copa e aquela atuação foram o último grande símbolo de um jogador como herói individual absoluto de uma Copa. Maradona como símbolo eterno do futebol, sim. Mas Maradona, para o bem e para o mal, foi mais do que apenas um jogador de futebol, não só na Argentina.

Em uma entrevista antiga, o ator francês Gerard Depardieu foi questionado se ele poderia interpretar Maradona. E ele respondeu que, claro, poderia ser Maradona pelos meses que a filmagem exigia. Mas não para a vida. Porque isso era impossível.

Além disso, qual de todos os Maradona? O Mago? O viciado? O grande sedutor? O demoníaco? A vítima ou o agressor? Aquele que pesava 120 quilos ou a estrela do sucesso televisivo "La Noche del 10", onde no mesmo programa entrevistou o ator mexicano Roberto Bolaños (Chaves) e Fidel Castro, o líder cubano que também morreu no dia 25 Novembro (igual a George Best)?

A TV reprisa a entrevista que Maradona fez com Diego, em "La Noche del 10", usando um jogo de imagens. “Se você tivesse que dizer alguma coisa a ele no cemitério, o que diria?”, pergunta Maradona. "Obrigado por jogar futebol", responde Diego.

Muitos buscaram diferenciar o craque do personagem, Diego de Maradona, como se algo assim pudesse ser possível. Garrincha foi chamado de a "Alegria do Povo". O seu fim, como relatou Ruy Castro no livro "Estrela Solitária", foi de uma tristeza insondável, inchado e dopado pelos medicamentos para conter o álcool e a depressão. Ídolo sacrificial.

Talvez Diego sempre tenha querido deixar de ser Maradona. E pode ter sido tarde. “Para mim”, disse uma vez o escritor argentino Roberto Fontanarrosa, “não me importa o que Maradona fez com a vida dele. Eu me importo com o que ele fez com a minha". E o que ele fez com a de outros milhões. Na Argentina, em Nápoles ou na Índia. Onde quer que o futebol seja amado.

Ezequiel Fernandez Moores, 63, é jornalista. Nascido em Buenos Aires, cobriu oito Copas do Mundo. Escreve semanalmente para o diário argentino La Nación.

Traduzido por Azahara Martín Oretga

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