Descrição de chapéu Campeonato Brasileiro 2021

José Silvério deixa aposentadoria para provar que ainda pode narrar

Locutor histórico do rádio brasileiro decide retornar depois de 15 meses parado

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São Paulo

A 40 minutos do início de Palmeiras e Corinthians, neste sábado (12), José Silvério abre a bolsa e coloca sobre a mesa cronômetro digital, toalha de rosto azul clara e percebe ter deixado em casa o fio do seu fone de ouvido vermelho.

"Há tanto tempo que não o pegava...", constata.

José Silvério, 75, volta a narrar futebol depois de 15 meses parado
José Silvério, 75, volta a narrar futebol depois de 15 meses parado - Lucas Seixas-31.mai.19/Folhapress

Um ano e três meses, para ser exato. Em março de 2020, um dos locutores mais conhecidos da história do rádio brasileiro havia decidido parar de narrar futebol após ser demitido pela rádio Bandeirantes. Agora resolveu fazer um teste consigo mesmo.

Será que aos 75 anos e inativo por 15 meses, período em que, confessa, viu poucas partidas pela TV, conseguiria voltar à ativa?

"Eu nunca fiquei tanto tempo assim sem irradiar", completa, usando o verbo que denuncia ser ele de uma velha guarda em extinção no rádio brasileiro: "Eu sou de um estilo que não existe mais".

Mesmo antes da partida, no programa pré-jogo da Rádio Capital, em São Paulo, sua voz, inconfundível para quem se acostumou a escutá-lo, ecoa pelo prédio da emissora no bairro do Paraíso (zona sul da capital). A cada nome histórico citado, ele parece ter uma história para contar.

"Narrei gol do Vaguinho como júnior do Atlético-MG", diz, sobre o atacante que ajudou o Corinthians a sair da fila de 23 anos sem títulos de expressão, em 1977.

Algumas vezes José Silvério afirma estar perto de se emocionar, mas é um sentimento que não parece visível.

"Meu celular está cheio de mensagens", se surpreende, ao checar o aparelho em um dos intervalos.

Nascido em Itumirim (260 km de Belo Horizonte) e descoberto para o rádio ao ser visto (ou seria ouvido?) narrando jogos de futebol de botão em sua terra natal, ele esteve presente em 11 Copas do Mundo em sequência a partir de 1978. A partida deste sábado aconteceu no aniversário de uma de suas transmissões mais famosas. Era outro Palmeiras e Corinthians, mas disputado em 12 de junho de 1993.

Foi o clássico em que a equipe alviverde voltou a ser campeã após 17 anos. Quando Evair converteu o pênalti na prorrogação e praticamente selou a conquista, Silvério disse, antes de gritar aquele "gol" com um "g", dezenas de "o" e um "l": "Agora eu vou soltar a minha voz!".

Virou uma das frases mais marcantes daquele título e fez muitos ouvintes acreditarem que ele é palmeirense, o que não é verdade. A rádio Jovem Pan vendeu milhares de fitas cassetes com aquela narração.

"Como vou pegar os times, hein?", ele quis saber da produção neste sábado, ao questionar onde estavam disponíveis as escalações.

O locutor não está acostumado a transmitir futebol em um estúdio. Por 45 anos no rádio paulistano (são 58 anos no total na profissão), viajou de estádio em estádio, no Brasil e no exterior. Quando perguntado se é ruim narrar de uma sala fechada e diante da TV, ele solta uma de suas palavras favoritas em forma de pergunta: "Sinceramente?".

É a deixa para dizer algo inesperado. "Não muda nada estar no estúdio. Posso dizer que é até melhor porque, se você vai no Morumbi, por exemplo, depois do jogo tem de sair no meio da torcida e, aos 75 anos, não tenho mais idade para ser reconhecido, xingado por alguém que não gosta de mim, ou mesmo atacado."

José Silvério antes do início da transmissão entre Palmeiras e Corinthians, pelo Campeonato Brasileiro
José Silvério antes do início da transmissão entre Palmeiras e Corinthians, pelo Campeonato Brasileiro - Alex Sabino/Folhapress

É mais do que isso. Sua mulher, Rose, havia dito que, se ele frequentar estádios de novo, pediria divórcio. Silvério fala dela a toda hora. Foi quem mais resistiu à volta do narrador à atividade ao constatar que, financeiramente, o casal não precisava daquilo mais. Acabou convencida depois de muita insistência.

Antes de vê-lo sair de casa para seu retorno ao mundo do rádio, a mulher avisou: o marido tomara aquela decisão por gosto, não por necessidade.

"E me falou que eu estava fazendo aquilo contra a vontade dela", se recorda ele, rindo.

Silvério casou com Rose dois meses depois de ficar viúvo de Tianinha, sua primeira esposa, com quem teve um filho e duas filhas. Conheceram-se em Lavras (390 km de Belo Horizonte), onde construíram uma das casas em que vivem no circuito São Paulo-Minas Gerais.

José Silvério afirma não saber qual será seu salário agora. Jura que não resolveu voltar por saudade. "Eu não queria mais", confessa. Mas com o passar do tempo, começou a escutar alguns jogos. Um de cada vez, não como antes, quando ouvia dois ou três ao mesmo tempo, deixando Rose sem entender nada.

"Percebi que sou melhor do que isso", diz, se referindo às emissoras que acompanhava.

O narrador está ali para testar se seu pensamento é verdadeiro, mas foi para a transmissão do dérbi deste sábado com um receio que definiu como "titubear". O medo de não ser o mesmo de antes.

Às 18h41, 19 minutos antes de a bola rolar, ficou sozinho no estúdio diante da TV. Sem comentarista, sem plantão esportivo para passar outros resultados da rodada e com dois repórteres que estavam em outro local da emissora. Na sala ficaram apenas José Silvério e o microfone.

"Alô, ouvintes do Brasil", disparou, com seu estilo imitadíssimo de esticar a última letra da frase.

Ele estava com um receio infundado. Sua narração foi a mesma dos anos anteriores, com o estilo de dizer ao ouvinte onde a bola estava e quem a dominava, sem pausas para brincadeiras ou bordões. Mesmo quando Palmeiras ou Corinthians trocavam passes no campo de defesa, sem emoção alguma, era aquilo o que o narrador fazia: relatar o que acontecia em campo.

Silvério não irradia com a voz apenas. Também o faz com a mão esquerda, a que não segura o microfone. É a que não para um segundo enquanto ele fala. Dedilha a mesa, mexe no papel das escalações, o polegar conta os outros dedos, arruma a gola da camisa.

Quando Raphael Veiga abriu o placar, aos três minutos, o narrador fechou os olhos para gritar gol e cravou as unhas na mesa. O timbre não perdeu nada nos 15 meses de inatividade. O mesmo aconteceu no empate de Gabriel para o Corinthians, no segundo tempo

"Eu sabia que não seria a mesma coisa. Não tenho mais a vitalidade da juventude e o futebol também não é o mesmo", afirma.

Mas, se era um teste, José Silvério aprovou a si mesmo.

"Eu vim sem saber o que esperar. Se ficasse travado, seria o primeiro a dizer: não dá mais para mim. Mas já deu para ver que dá. Acho que vou continuar. Não tenho prazo, mas creio que dá para fazer isso aqui por mais um ano", confirma em um dos intervalos. Em 2022 acontecerá a Copa do Mundo no Qatar. Pode ser sua 12ª seguida.

Um dos produtores sinaliza pelo vidro que ele tem de citar tempo e placar, que é a deixa para o texto de um anunciante da rádio. Silvério faz o que lhe é solicitado.

"A gente aprende. Tem tempo."

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