Expectativas da sociedade criam obstáculos para mulheres japonesas no esporte

Oportunidades ainda são limitadas pelas normas rígidas de gênero no Japão

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Motoko Rich Hikari Hida
Tóquio | The New York Times

Kurumi Mochizuki é uma jogadora de futebol habilidosa, capaz de dominar uma bola com os ombros e deixá-la escorrer pela cabeça até seu pé direito, e de mantê-la no ar por mais de uma dúzia de embaixadas. Ela faz com que tudo isso pareça fácil.

Mas, quando treina com seu time em um clube na região sudeste de Tóquio, os treinadores às vezes mandam que ela faça pausas mais longas do que os colegas e a aconselham a não carregar sacolas de bolas pesadas, quando os jogadores estão removendo o equipamento de campo no final do treino.
Tudo isso porque ela é menina.

Kurumi, 13, é a única menina em seu time. Ela joga com meninos porque não há times femininos perto de seu bairro ou em sua escola. Quando ela chegar ao segundo grau, também será difícil encontrar um time. Apenas uma das 14 escolas secundárias da área em que Kurumi vive tem um time feminino.

O irmão mais velho dela, que joga futebol em sua escola de segundo grau, não enfrenta o mesmo problema –quase todas as escolas de segundo grau do distrito têm times masculinos de futebol.

“É mais fácil para os meninos”, disse ela. “Invejo isso.”

A meia Homare Sawa celebra o título do Japão na Copa do Mundo feminina de futebol de 2011; ela é exceção em um país que cria obstáculos para as esportistas - Patrik Stollarz - 17.jul.11/AFP

É essa a situação do esporte feminino no Japão, e as atletas muitas vezes precisam se esforçar muito para buscar a realização de seus sonhos.

As oportunidades são limitadas pelas normas rígidas de gênero da sociedade japonesa, que enquadram a vida das mulheres não só nos campos esportivos mas também em casa e nos locais de trabalho.

As disparidades continuam a ser brutais mesmo que as atletas japonesas tenham apresentado desempenho superior ao dos homens em Olimpíada após Olimpíada. E que uma tenista nascida no Japão, Naomi Osaka, tenha se tornado uma das maiores estrelas do esporte mundial.

A Olimpíada de Tóquio, que começa no mês que vem, oferece uma oportunidade para sagrar uma nova geração de campeãs que inspirem as meninas com aspirações atléticas. Mas, quando os holofotes olímpicos se apagarem, meninas como Kurumi continuarão a ter de enfrentar sérios obstáculos.

O Japão não tem uma lei como o Título 9, o estatuto norte-americano que requer que escolas que recebem verbas públicas federais ofereçam oportunidades iguais a meninos e meninas. E não existem dados públicos sobre os gastos das escolas com esportes extracurriculares ou sobre a divisão de gastos entre meninos e meninas.

As atletas que perseveram muitas vezes se veem forçadas a superar estereótipos do passado, de que aquilo que estão fazendo não é uma atividade feminina, o que ameaça suas chances de atrair meninos e de mais tarde se tornar cônjuges e mães. Mesmo os treinadores encaram a participação delas por essa lente, e em alguns casos dão aulas de etiqueta às meninas para assegurar que estejam preparadas para a vida doméstica.

É ainda outra área em que o Japão não ajuda as mulheres a desenvolver plenamente seu potencial como líderes em diversos campos, apesar de declarações recentes de políticos de que o país precisa elevar as mulheres para tirar a economia da estagnação.

A japonesa Naomi Osaka é um dos grandes nomes do tênis - Matthew Stockman - 27.ago.20/AFP

Ainda que muitas mulheres agora trabalhem fora, a expectativa continua sendo que ocupem posições subordinadas às dos homens. Em suas vidas cotidianas, meninas e mulheres são pressionadas a se enquadrar a padrões bem estreitos de comportamento, a ser pudicas e delicadas.

“Quando um menino se sai bem no esporte, isso faz dele um modelo para os colegas”, disse Tetsuhiro Kidokoro, professor assistente da Universidade Nippon de Ciência do Esporte. “Mas a definição de feminilidade não inclui que as meninas se saiam bem no esporte.”

Quaisquer que sejam as expectativas da sociedade, Kurumi espera jogar futebol de primeiro nível, como sua heroína, Homare Sawa, capitã da seleção japonesa que venceu a Copa do Mundo feminina de 2011 e ficou com a medalha de prata na Olimpíada de Londres no ano seguinte.

Kurumi seguiu o exemplo do irmão e começou no futebol aos seis anos. “Quando eu era pequena, nem me preocupava com isso”, disse ela, sobre ser a única menina no time. “Mas, quando cresci um pouco, fiquei muito mais consciente da situação.”

O time de futebol extracurricular de sua escola de ensino médio é tecnicamente misto, mas nenhuma menina faz parte da equipe de 40 jogadores. Kurumi decidiu continuar no time da escola com quem joga desde o primário, em vez de tentar ingressar em um novo grupo ao mudar de escola.

“Existe uma diferença de tamanho e agressividade entre meninos e meninas”, disse Shigeki Komatsu, o vice-diretor da escola de ensino médio, assistindo da beira do campo de cascalho ao coletivo dos meninos, cujas chuteiras erguiam nuvens de poeira quando eles corriam.

Koko Tsujii, 17, que vive em Suginami, um bairro do oeste de Tóquio, estava determinada a jogar futebol desde a primeira série, apesar da opinião de sua mãe de que o esporte era para meninos.
Ela agora joga na equipe feminina de um clube no qual o número de meninos é quase cinco vezes maior que o de meninas.

Além de instruções sobre como chutar em gol, as meninas do time recebem aulas de feminilidade. No ensino médio, ela foi a um acampamento de treino de futebol, e um dos treinadores deu aulas às meninas de como deviam segurar os “hashi” e as vasilhas de arroz de uma forma que ele via como suficientemente delicada.

“Ele mencionou que teria preconceito contra uma menina, em um encontro, se alguém lhe contasse que ela jogava futebol”, recordou Koko, depois de concluir uma série de piques intensos pelo campo, em um treino noturno recente.

“Não gostei da ideia, no começo, mas, agora que estou no segundo grau, agradeço. Percebi que alguns meninos se incomodam com esse tipo de coisa”, acrescentou Koko.

Depois que a seleção feminina do país venceu a Copa do Mundo, dez anos atrás, houve esperanças de que a situação das mulheres esportistas melhoraria no Japão.

Antes daquela vitória, o número de meninas nos Estados Unidos que treinavam futebol disparou, com a vitória da seleção norte-americana na Copa do Mundo de 1999, que foi disputada no país.

Mas o Japão não passou por um florescimento semelhante, e as disparidades não se tornaram um assunto em debate na sociedade mais ampla.

Título mundial da seleção de futebol em 2011 não impulsonou o esporte feminino japonês - John MacDougall - 17.jul.11/AFP

De acordo com uma pesquisa realizada em 2019 pela Fundação Sasakawa para o Esporte, 1,89 milhão de meninos dos 10 aos 19 anos –mais ou menos um terço dos meninos dessa faixa de idade no Japão– jogavam futebol, casualmente ou como parte de um time fixo, pelo menos duas vezes por mês, ante apenas 230 mil meninas, ou pouco mais de 4%.

Apenas 48 das 1.324 escolas de ensino médio no Japão têm times femininos de futebol, de acordo com a Associação Nippon de Cultura Física em Escolas de Ensino Médio. Essa desproporção se estende à vida adulta; apenas 5% dos atletas registrados na Associação de Futebol do Japão são mulheres.

Como nos Estados Unidos, a disparidade de remuneração é enorme. De acordo com reportagens, os homens que jogam futebol profissional têm salários mais de dez vezes maiores que os das colegas mulheres.

Além do futebol, os esportes que mais atraem a atenção no país são dominados por meninos e homens. No final do verão, o Japão acompanha com muita atenção um torneio escolar de beisebol chamado Koshien, criado mais de cem nos atrás. Logo depois do Ano-Novo, audiências imensas assistem à Hakone Ekiden, uma maratona de revezamento em nível universitário que só admite corredores homens.

Existem poucos defensores conhecidos das mulheres no esporte, e a maior parte daqueles que as treinam são homens, que muitas vezes não oferecem apoio às meninas nas mudanças físicas pelas quais elas passam na adolescência.

Hanae Ito, nadadora que representou o Japão na Olimpíada de Pequim em 2008, disse que os treinadores com quem trabalhou lhe diziam que ela era “mentalmente fraca” quando ganhava peso ou sofria mudanças de humor associadas à menstruação, como atleta adolescente.

“Eu achava que eu era o problema, que a culpa era minha. Mas acredito que tudo isso esteja vinculado ao Japão ser uma sociedade patriarcal. Mesmo os esportes femininos são vistos do ponto de vista masculino”, afirmou.

A ideia de que as mulheres do esporte precisam se preocupar a respeito de suas futuras perspectivas de encontrar homens tem raízes profundas.

Depois que a nadadora olímpia Hideko Maehata se tornou a primeira mulher a conquistar uma medalha de ouro para o Japão, o jornal Asahi Shimbun, um dos maiores do país, alardeou sua vitória na Olimpíada de Berlim, em 1936, com a manchete: “Agora só falta ela se casar”.

Essas atitudes persistem ainda hoje. Yuki Suzuki, que jogou na liga Nadeshiko de futebol profissional feminino japonês e era treinadora do esporte até ter seu primeiro filho, sente-se frustrada diante das definições rígidas de gênero.

Suzuki, 34, diz que “as meninas sempre ouvem que precisam ser femininas”. “Acho que precisamos mudar a cultura fundamental do Japão com relação às mulheres”, opinou.

Mesmo quando as meninas têm oportunidade de jogar, a parcialidade em favor dos meninos é revelada em muitos detalhes. Na escola de ensino médio em que Kurumi estuda, os times de basquete e vôlei masculinos têm o uso do ginásio para seus treinos três dias por semana, enquanto os times femininos ficam com os dois dias restantes.

Kurumi disse que tenta não se preocupar com o tratamento desigual. Ela não se zanga com os treinadores, diz, por proibi-la de carregar equipamento pesado nos treinos.

“Tenho certeza de que os treinadores estão cuidando de mim”, disse. “Mas, pessoalmente, sei que sou capaz de carregar aquilo.”

Tradução de Paulo Migliacc

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