Xi Jinping realiza sonho esportivo com resorts de esqui e escolas de curling

Sede dos Jogos de Inverno, China vê população aderir à prática de esportes de neve

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Pequim | The New York Times

Na cidade de Guangzhou, no sul da China, onde as temperaturas são muito quentes na maior parte do ano, crianças estão trocando seus chinelos por esquis e treinando em pistas cobertas.

Mais a oeste, nas alturas do platô tibetano, a província de Qinghai se tornou um polo improvável de curling, tradicional esporte escocês que os chineses conhecem como "chaleira na neve".

E na província de Liaoning, na região nordeste, um grupo de aposentados se reúne a cada dia no inverno e coloca patins e capacetes de hóquei para jogos disputados num rinque a céu aberto.

Cenas como essas, raras no passado, estão se tornando cada vez mais comuns à medida que o Partido Comunista, que governa a China, leva adiante sua ambiciosa campanha para transformar o pais – boa parte do qual não recebe neve natural – em uma potência mundial dos esportes de inverno.

A campanha começou em 2015, quando o líder chinês, Xi Jinping, prometeu que o país, que tinha acabado de conquistar o direito de sediar os Jogos Olímpicos de Inverno de 2022, teria 300 milhões de entusiastas dos esportes de gelo e neve quando as Olimpíadas chegassem.

Xi fez da obtenção de sucessos esportivos um dos pilares de sua visão do "sonho chinês", uma promessa nacionalista de prosperidade e rejuvenescimento do país.

Em uma terra na qual as palavras do líder são encaradas quase como um evangelho, muita gente deve ter previsto o que aconteceria a seguir: praticamente do dia para a noite, marcas, investidores, governos locais e a população correram a responder.

Resorts de esqui e rinques de patinação floresceram em todo o país. Escolas de ensino básico e médio correram a criar programas de esportes de inverno. Companhias especializadas em trajes e equipamento de esportes de inverno e de entretenimento pós-esqui surgiram em grande número.

"Foi como a decolagem de um foguete, e de repente tudo mudou", disse Carol Zhang, 50, treinadora de patinação artística em Shenzhen, uma cidade úmida e subtropical no sul da China. Zhang disse que o número de alunos que ela treina quase triplicou desde 2015. "Hoje em dia, muitas crianças querem fazer esportes de inverno", disse Zhang.

Algumas semanas antes do começo das Olimpíadas de Inverno de Pequim, a mídia estatal chinesa proclamou triunfantemente que as metas de Xi tinham sido atingidas. O país agora tem 654 rinques de gelo de tamanho oficial, 803 resorts de esqui e 346 milhões de pessoas "tomaram parte pelo menos uma vez de atividades relacionadas aos esportes de inverno", de acordo com a agência oficial de notícias chinesa.

As autoridades informaram que o número de pessoas foi calculado usando um método de amostragem aleatória. Alguns analistas expressaram ceticismo quanto aos números, apontando para a definição vaga do que constitui "participação" em um esporte.

Ainda assim, existe pouca dúvida de que a campanha teve impacto. Os resorts de esqui da China receberam mais de 20 milhões de esquiadores na temporada 2018/2019, de acordo com um relatório setorial recente. Isso é o dobro do número de 2014 e representa cerca de um terço do número de dias esquiados nos Estados Unidos no mesmo período.

A China quer criar um mercado de esportes de neve de US$ 157 bilhões (R$ 812 bilhões) até 2025 – um movimento quase tão grande quanto o do mercado mundial total em 2020.

Em resorts perto de Pequim, carros com porta-esquis no teto começaram a aparecer nos estacionamentos. Está surgindo uma cultura de entretenimento pós-esqui com caraterísticas chinesas, com fontes térmicas, "hot pots" (um prato tradicional no país) e karaokê.

A mania dos esportes de inverno não se limita ao esqui. O interesse por snowboard, hóquei, patinação artística e curling disparou

Pista de esqui em Zhangjiakou, norte da China, utilizada nos Jogos de Inverno de 2022
Pista de esqui em Zhangjiakou, norte da China, utilizada nos Jogos de Inverno de 2022 - Wu Zhuang/Xinhua

Quando Jing Gang, 41, se mudou de volta para sua cidade de origem, Tianjin, em 2007, vindo da Finlândia, ficou desapontado ao ver que só existiam dois pequenos rinques de patinação e quase nenhuma compreensão do hóquei no gelo, um esporte pelo qual ele tinha se apaixonado ao estudar no exterior.

"Eu costumava andar com meu bastão de hóquei, e as pessoas me paravam para perguntar se eu estava indo pescar", recorda Jing. Outras acreditavam que era "um esporte de combate, altamente violento".

Agora, pouco mais de uma década mais tarde, Tianjin tem três grandes rinques de hóquei e uma liga juvenil com cerca de 20 times. Jing, hoje gerente de um desses rinques, disse que o esporte estava ganhando popularidade em cidades de todo o país.

Shan Zhaojian, historiador chinês do esqui, estabeleceu um paralelo entre a campanha de Xi e um esforço semelhante liderado por Mao Tsé-Tung, que acreditava que a participação em massa em atividades físicas era necessária para que a classe trabalhadora se mantivesse saudável.

"Para construir uma nação forte, é preciso no mínimo um corpo forte", disse Shan sobre o pensamento de Xi.

A China não estava começando completamente do zero. No nordeste e no extremo oeste do país, a tradição do esqui e da patinação já dura diversas gerações. A China também conquistou medalhas de ouro na patinação de velocidade e na patinação artística.

Mas as autoridades, gigantes dos imóveis e marcas internacionais interessados em desenvolver o mercado de esportes de inverno encaram desafios, como o da falta de neve natural em boa parte da China, e a relativa escassez de infraestrutura esportiva e de transportes públicos nos resorts de esqui.

Na capital, Pequim, o governo investiu fortemente em máquinas pesadas de produção de neve e em novas linhas ferroviárias de alta velocidade. Agora os moradores podem se deslocar rapidamente do centro da cidade aos resorts de esqui multibilionários e montanhas recobertas de neve que existem perto da capital.

Na região sul da China, mais quente, a solução foi construir resorts de esqui coberto. O Guangzhou Sunac Snow World, segundo maior resort de esqui coberto do planeta, tem quatro pistas de esqui com neve artificial, cada uma com 400 metros de comprimento. O resort é parte de um complexo imenso que inclui um parque aquático, um parque temático e diversos hotéis.

No entanto, alguns esportes continuam fora do alcance das massas. Os bilhetes dos teleféricos de esqui podem custar mais de US$ 100 (R$ 517), e um conjunto completo de equipamento para hóquei pode chegar aos US$ 4 mil (R$ 20 mil) – uma fortuna em um país no qual a renda per capita disponível é de pouco mais de US$ 4,7 mil anuais (R$ 24 mil).

E o custo é só um dos fatores adversos; muitos chineses também encaram os esportes de inverno como perigosos demais, uma impressão nem sempre incorreta.

Li Yinuo, atleta do esqui cross country, treina em escola da província de de Henan
Li Yinuo, atleta do esqui cross country, treina em escola da província de de Henan - Li An/Xinhua

Em um país com falta de instrutores qualificados, lesões são inevitáveis. Mais de 80% dos 13 milhões de esquiadores da China são iniciantes. Muitos novatos protegem seus traseiros com bichos de pelúcia – muitas vezes tartarugas, mas também outras criaturas. Isso ajuda a protegê-los nas quedas e serve de aviso aos demais esquiadores para que mantenham a distância.

O medo de cair é o que levou Bran Yang, 26, consultor de educação em Pequim, a fazer sua primeira aula de snowboard em uma encosta artificial "seca" (imagine uma longa esteira rolante inclinada para baixo). Sua inspiração foram vídeos de snowboarders que ele viu no Douyin, a versão chinesa do TikTok e também comerciais chineses estrelados por Eileen Gu, estrela americana do esqui, de origem chinesa.

Yang disse que espera em breve fazer a transição para as encostas destinadas a principiantes, para testar sua técnica em neve real pela primeira vez. Mas ele vai proteger o traseiro com uma tartaruga?

"Com certeza. Não quero me machucar", respondeu Yang. "E acho bem bonitinho".

A disposição de Yang de continuar tentando faz dele uma exceção. Apenas uma fração dos esquiadores estreantes chineses tenta o esporte uma segunda vez.

As autoridades e empresas esperam que os jovens provem ser mais dedicados. Mais de duas mil escolas em toda a China agora oferecem programas de esqui ou patinação. Até 2020, 11 escolas em Xining, a capital de Qinghai, ofereciam programas de curling.

Os jovens atletas costumavam ser treinados pelo Estado, mas alguns pais endinheirados começam a pagar por treinos em clubes privados e a adquirir equipamento, vendo a experiência como forma de melhorar o currículo de seus filhos que buscam vagas universitárias no exterior.

Não está claro se o entusiasmo pelos esportes de inverno persistirá depois dos Jogos. Alguns dos rinques de patinação já estão mostrando deterioração, e resorts de esqui de menor porte fecharam as portas. Mas especialistas dizem que a consolidação era previsível.

Promover o espírito do esporte é um dos principais objetivos de Jing, o administrador do rinque de hóquei em Tianjin, que também escreve sobre hóquei em seu blog, "Hockey Dad".

"Anime seus filhos, mas não os pressione sem pensar", escreveu Jing em um post recente dirigido a outros pais chineses de jogadores de hóquei. "Nosso principal objetivo como pais de atletas do hóquei deveria ser infundir nas crianças a paixão e amor pelo esporte."

Tradução de Paulo Migliacci

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