Refugiado insiste no futebol, mas constrói plano B na educação de crianças

Finalista da Copa dos Refugiados estuda para ser professor enquanto, inspirado em Neuer, tenta virar jogador profissional

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São Paulo

Abdu Cassamá, 29, costuma dizer que tem dois ídolos. O primeiro é seu irmão mais velho, Malam, 32, de quem herdou o gosto por jogar futebol. O segundo é o alemão Manuel Neuer, sua inspiração como goleiro.

Foi por causa dos dois, principalmente, que ele deixou uma das pequenas ilhas do arquipélago de Bijagós, na Guiné-Bissau, para migrar para o Brasil em 2018, em busca de uma oportunidade profissional.

"Em 2005, meu irmão esteve aqui jogando com a nossa seleção. Quando ele voltou para o nosso país, eu percebi que também poderia jogar como ele e ser um jogador profissional", conta Abdu à Folha.

Se ficasse no pequeno país da África, ele acredita que não teria tantas oportunidades de ter uma carreira no esporte. "Por isso eu decidi vir para cá."

Seleção de Guiné-Bissau que disputa a Copa dos Refugiados, em São Paulo
Seleção de Guiné-Bissau que disputa a Copa dos Refugiados, em São Paulo - Divulgação

Localizada na parte ocidental do continente africano, a Guiné-Bissau é um país de cerca de 2 milhões de habitantes, de acordo com dados do Our World In Data. No IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) da ONU (Organização das Nações Unidas), aparece em 177º de um total de 191 nações que constam na lista.

Segundo relatório do Programa Alimentar Mundial, também da ONU, quase três em cada quatro pessoas da população guineense não têm acesso a uma dieta energética devido aos elevados níveis de pobreza do país. Ainda segundo o estudo, o sistema alimentar local carece de alimentos nutritivos acessíveis.

Cerca de 50% do arroz consumido, por exemplo, é importado, e quase todo o peixe é exportado, resultando numa "disponibilidade limitada de alimentos ricos em nutrientes para a população local", diz o relatório.

A ex-colônia portuguesa sofre com os reflexos causados pela instabilidade desde sua independência, em 1974. Nos últimos 50 anos, foram ao menos nove golpes militares ou tentativas. Soma-se a isso a corrupção endêmica no país, considerado um centro de tráfico de cocaína entre a América Latina e a Europa.

Abdu conhece essa realidade. Ele não gosta de criticar a situação do país, mas reconhece que saiu dele para ter uma vida melhor. "Quando não se tem aquela segurança dentro da sua família mesmo, a pessoa procura outro caminho, outro país onde vai se sentir mais seguro, mais estabilizado", afirma.

No Brasil, que o guineense considera "um país cheio de oportunidades para trabalhar e estudar", ele tem o futebol como objetivo principal. "Meu grande sonho é ser jogador profissional", gosta de enfatizar o atleta, que disputou a final da Copa dos Refugiados por Guiné-Bissau, neste domingo (25), contra um time de atletas do Benin.

Elogiado por sua participação ao longo do torneio, o goleiro de 1,99 m não conseguiu segurar o ataque de Benin, que chegou ao título com uma vitória por 3 a 1 no Centro Esportivo de Pirituba, em São Paulo. Chidiebere Osuagwu, Mmaduabuchi Stanley Nbagwu e Daniel Eze fizeram os gols que decidiram o campeonato, mas não desanimaram Abdu.

Além de disputar o torneio pelos refugiados de seu país, ele joga pelo Guerreiros do Gordinho FC, um time de várzea do município de Jandira, na região metropolitana de São Paulo. Foi a forma que encontrou para se manter na ativa enquanto espera uma chance em um time profissional.

"O futebol é tudo para mim", afirma o goleiro, que se orgulha de saber jogar com os pés: "Como meu ídolo, o Manuel Neuer".

Goleiro Abdu, da seleção de Guiné-Bissau que disputa a Copa dos Refugiados, em São Paulo
Goleiro Abdu, da seleção de Guiné-Bissau que disputa a Copa dos Refugiados, em São Paulo - Divulgação

Mesmo aos 29, o jogador mantém a esperança de trilhar o mesmo caminho do famoso guarda-metas alemão, mas tem um plano B. Ele está se preparando para se tornar um professor.

Atualmente, cursa o último semestre do curso de pedagogia, com foco em matemática. Em seu projeto de conclusão do curso, está desenvolvendo uma dissertação sobre jogos e brincadeiras como ferramenta de ensino na educação infantil.

"Desde pequeno eu sempre fui bom com números. E aprendi muito sobre isso com um jogo chamado sete pedras, que eu brincava", conta.

Basicamente, o objetivo do jogo é construir uma pilha de sete pedras durante uma disputa entre dois times. A cada jogada, uma equipe tem a chance de derrubar a pilha do adversário com uma bola. "Com essa brincadeira, por exemplo, a criança consegue aprender mais um pouco sobre matemática."

O guineense está ansioso por sua formatura. Primeiro porque uma de suas irmãs deverá viajar ao Brasil para acompanhar a cerimônia. Mas também porque não tem sido fácil conseguir conciliar os estudos com suas outras atividades.

Além de jogar futebol, Abdu trabalha como repositor em uma loja, de segunda a sábado. Aos domingos, ainda arranja tempo para dar aulas de kizomba, um estilo de dança originário de Angola.

"É muita coisa para conseguir levar tudo junto. Eu tenho que me esforçar bastante para poder fazer todas essas atividades", reconhece. "Mas vale a pena, principalmente pelo futebol."

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