Alvo de xingamentos no Piauí, técnico iraniano diz que futebol é sua liberdade

Chamado de 'terrorista' e 'homem-bomba', Koosha Delshad persiste e busca espaço no Brasil por paixão pelo esporte

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Santos

O técnico iraniano Koosha Delshad, 39, diz ser movido por paixões. Foi uma dupla experiência com o sentimento que o atraiu ao Brasil em 12 de março de 2014.

Um dos motivos de sua chegada foi Mahsima Nadim, iraniana que desembarcara no país dois anos antes e mantinha com ele um relacionamento a distância, por Skype. O outro foi o futebol.

"Eu vim para este país por paixão. Primeiro por Mahsima, hoje minha esposa. Nós nos conhecemos no Irã, mas nos aproximamos mesmo de longe. Sentia vontade de estar perto dela, de mudar de vida. E, claro, vim pelo futebol. Costumo dizer que Mahsima e o futebol formam a minha liberdade", disse à Folha.

Na última semana, o profissional foi alvo de ataques xenofóbicos de uma parte da torcida do time que dirigia pela primeira – e única– vez, o Comercial, da primeira divisão do Campeonato Piauiense.

O iraniano Koosha Delshad busca espaço no futebol brasileiro - Koosha Delshad no Instagram

Delshad contou ter escutado ofensas como "treinador terrorista", "homem-bomba", "manda a bomba", além de xingamentos homofóbicos como "viado". E entendeu que ficar calado seria como perder a liberdade que conquistou.

"Eu não tinha vida nem liberdade [no Irã], aqui foi o lugar onde encontrei pela primeira vez isso. A liberdade e a democracia são doces, não aceito mais perdê-las", afirmou, em ótimo português.

O caso ganhou proporção nacional quando o profissional usou as redes sociais para desabafar sobre o ocorrido no estádio Deusdeth de Melo, no município de Campo Maior.

"Fiquei triste, mas, quando vi o apoio e força que me deram, percebi que as poucas pessoas xenofóbicas não representam o povo brasileiro e o piauiense também", relatou.

"Mais de 90% dos iranianos acreditam que o nosso governo, regime e sistema é terrorista. Estamos lutando em vários países contra eles, sempre falamos que o mundo sem eles será mais bonito e seguro. Por isso, quando alguém nos chama assim, até mesmo na brincadeira, é ainda mais pesado", acrescentou.

Não há registros sobre os xingamentos na súmula do jogo. "Nada houve de anormal", diz o texto, assinado pelo árbitro Antonio Dib Moraes de Sousa. Segundo o boletim financeiro, havia 268 pessoas no local.

Delshad recebeu várias manifestações de apoio e pedidos de desculpas de brasileiros. Teve ainda ligações de treinadores, dirigentes da CBF (Confederação Brasileira de Futebol) e da FPF (Federação Paulista de Futebol).

"Nós, treinadores e jogadores, aceitamos normalmente os xingamentos. No Irã também é assim, mas xenofobia, homofobia e racismo são crimes. Por que ficamos indiferentes no futebol? Quando as pessoas não gostam de um filme, elas quebram o cinema?", questionou.

Koosha Delshad fez cursos de treinador na CBF Academy - Koosha Delshad no Instagram

O treinador foi anunciado pelo Comercial no último dia 31 de janeiro, contratado pela empresa gaúcha JK Sports, parceira do clube. No dia seguinte, já comandava a equipe à beira do gramado.

"Eu pisei no campo, e torcedores me questionaram sobre alguns jogadores, mas nem sabiam que eu recebi avisos de três deles que não poderiam ir para o jogo. Começaram, então, a xingar o meu goleiro e a mim de forma ríspida. Foi muito hostil", recordou.

O time acabou derrotado por 4 a 0 pelo River. Koosha pediu desligamento imediato, retornando a São Paulo, onde possui residência.

O trabalho de apenas 48 horas de duração no Piauí foi a primeira oportunidade em uma equipe profissional na carreira como técnico e, segundo ele, a primeira experiência negativa em solo brasileiro.

"A notícia chegou a grandes emissoras de televisão no Irã."

A trajetória de Koosha Delshad no futebol começou ainda em seu país, como técnico de equipes de base entre 2008 e 2013.

Formado como engenheiro elétrico, chegou ao Brasil e trabalhou inicialmente em uma fábrica de tapetes persas. Passou a cursar em 2016, de forma remota, cursos de treinador e a se dedicar aos processos de licenciatura da CBF Academy. Concluiu as categorias A, B e C.

No período, trabalhou como auxiliar e analista no Cascavel CR, do Paraná, como técnico do sub-15 e sub-17 do CFA Manchister, de Santa Catarina, e fez estágios obrigatórios na base do Palmeiras e no elenco profissional do São Bernardo, na última Série D do Campeonato Brasileiro.

"Quero mostrar que sei trabalhar, que estou aqui para tentar ser alguém. É por paixão pelo futebol que quero continuar. O Abel certamente passou por ofensas assim mil vezes, não é fácil aguentar", comparou.

A referência é a Abel Ferreira, português que conquistou impressionantes sete títulos desde sua chegada ao Palmeiras, em outubro de 2020. Apesar dos resultados, ele é alvo frequente de críticas, sobretudo por seu temperamento. Algumas, como já manifestou seu clube em nota oficial, são "de cunho xenófobo".

Segundo o último relatório divulgado pelo Observatório Racial no Futebol, referente à temporada 2021, 10 dos 124 casos registrados de discriminação e preconceito no futebol foram manifestações xenofóbicas. Os demais são ofensas racistas, LBGTfóbicas ou machistas.

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