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A trégua entre gangues de Nova York que deu origem a um esporte olímpico

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Ben Wyatt
BBC Sport | BBC NEWS

O breaking, ou break dance, foi incluído como modalidade de disputa nos Jogos Olímpicos de Paris, em 2024.

Muitas pessoas podem ter se surpreendido com a decisão. Mas, para o escritor, produtor, artista, empresário e autodenominado pioneiro do hip hop Michael Holman, foi a realização de uma visão que ele teve 40 anos atrás.

O site dos Jogos Olímpicos descreve o breaking como estilo de dança hip hop caracterizado por "movimentos acrobáticos e passos estilizados".

Grupo de jovens dançam em rua
O grupo Rock Steady Crew, apresentando-se em Nova York em 1983 - Getty Images/Via BBC

Mas é um formato muito diferente da patinação no gelo e da ginástica. Os atletas não aguardam sua vez de se apresentar individualmente e impressionar os jurados.

Os dançarinos do breaking irão para as pistas de Paris em pares, disputando ombro a ombro e superando os movimentos uns dos outros para levar uma medalha para casa.

No início dos anos 1980, Michael Holman promovia uma revista semanal de hip hop em um clube de Nova York combinando rap e grafite com a nova forma de dança de rua.

No início, o objetivo era apresentar-se. Os artistas dançavam, o público aplaudia, a noite prosseguia e vinha o ato seguinte.

Mas Holman insistiu em acrescentar mais um elemento à sua noite de sucesso.

"Nova York é competição, é tentar ser o melhor", ele conta. "E eu queria trazer outro grupo para a disputa. Eu queria que o público assistisse a um combate, não apenas passos de dança."

Era o que Holman havia presenciado meses antes nas ruas nova-iorquinas do Bronx. Ali, o breaking surgiu como forma de competição de dança, como válvula de escape para as tensões das gangues que importunavam a Nova York dos anos 1970.

"Havia os [grupos] Ghetto Brothers, Black Spades, Savage Nomads e Savage Skulls", relembra Holman. "E eles estavam se massacrando há anos, matando uns aos outros."

"Até que, em 1971, Yellow Benji — o líder dos Ghetto Brothers — forçou uma trégua que permitiu que os meninos e meninas das gangues rivais se reunissem para festejar."

Foi nessas festas que a dança substituiu a violência como saída para as rixas da vizinhança.

"Os dançarinos observavam outros dançarinos dizerem: 'uau, isso é fantástico'", prossegue Holman. "'A forma como você está trazendo os passos de kung fu da comunidade chinesa... Vou incorporar o seu kung fu e incluir minha dança africana, ou incorporar na estética de ginástica porto-riquenha.'"

"Tudo isso, dançando ao som dos discos antigos de James Brown mixados nos sistemas de som em estilo jamaicano. É a cultura da dança hip hop", segundo ele.

Giroscópios humanos

O primeiro grupo de dançarinos de breaking permanente nas noites de Holman foi agenciado informalmente por ele e chamava-se Rock Steady Crew.

Inicialmente, eles hesitaram em dividir o palco com um conjunto rival, mas acabaram cedendo aos pedidos de Holman.

"Eu trouxe um grupo chamado Floor Masters, que explodiu, foi um momento histórico", conta Holman.

"Os Floor Masters eram muito mais atléticos, rápidos e potentes. Quando eu vi a disputa deles, larguei o Rock Steady Crew como se fosse uma batata quente."

Holman ajudou a formar e gerenciar um novo grupo de breaking concentrado apenas nos passos de "potência" que ele observou nos Floor Masters.

Eles chamaram os melhores dançarinos dos melhores grupos dos cinco distritos da cidade. O novo grupo recebeu o nome de New York City Breakers e incluía alguns dos expoentes da nova forma de arte: Noel "Kid Nice" Manguel, Matthew "Glide Master" Caban e Tony "Powerful Pexster" Lopez.

Juntos, eles elevaram o breaking a um novo nível de técnica.

"Eu me livrei dos dançarinos fracos e investiguei três ou quatro grupos diferentes da cidade. Criei um supergrupo poderoso", afirma Holman.

"Os [New York City] Breakers eram como giroscópios", segundo ele. "Eles começavam a dar os passos, desciam até o chão e usavam algum tipo de propulsão interna, misturada com a fricção do solo, para impulsionar-se simultaneamente ou espalhar-se de uma certa forma. Eles criavam uma energia interna."

"Eles conseguiam girar e se exibir. Eles criaram uma nova forma de movimento, era pura poesia."

Homem usando camisa azul sorri
Holman saiu do emprego como banqueiro em Wall Street para mergulhar na vibrante cena cultural de Nova York nos anos 1980. - Getty Images/Via BBC

'Olhe para mim, veja o que eu posso fazer'

Holman chegou de São Francisco a Nova York pela primeira vez em 1978. Ele trabalhava em um banco em Wall Street, mas "vestia a camisa da [banda] Brookes Brothers todos os dias" e se apaixonou rapidamente pela cultura sombria da cidade que ele chamou de lar.

"Eu morava em um apartamento entre [as ruas] Hudson e Chambers", ele conta.

"Eu saía do elevador de manhã e encontrava Joey Ramone [vocalista dos Ramones] saindo de uma festa que havia durado a noite toda com uma garota em cada braço. Era maluco."

Holman logo passou a fazer parte daquele cenário, fazendo amizade com o artista pioneiro do grafite Fab Five Freddy e frequentando casas noturnas como Max’s Kansas City, Mudd Club e CBGBs — locais que permitiam que ele se misturasse com músicos, poetas e outros artistas promissores.

"Eu estava devorando Nova York como se fosse sorvete", afirma Holman, com saudade.

Ele se lembra de voltar sozinho de uma festa tarde da noite, quando viu os primeiros sinais de uma nova cultura de rua surgindo à sua volta.

"Eu estava esperando o metrô, quase dormindo", relembra ele. "Foi quando o trem chegou à estação, coberto de cima abaixo com marcas de grafite e burners [desenhos grandes e detalhados, feitos com tinta spray] por todas as janelas."

"Eu nunca havia visto nada como aquilo, era uma mensagem enlouquecida das ruas. Era vandalismo, mas era bonito, ao mesmo tempo."

"Eram jovens dizendo: 'Olhe para mim. Veja o que eu posso fazer. Não sou um zé-ninguém. OK, esta cidade é sede das Nações Unidas, é a capital da imprensa e das finanças, mas eu sou um menino do Bronx e também sou bom em alguma coisa!'"

Para Holman, aquele ethos também estava por trás do surgimento do hip hop e da compulsão dos dançarinos de breaking por expressar-se através da dança.

"A questão é, 'olhe para mim, eu sou alguém'", explica ele. "Posso pegar um microfone e escrever minha própria poesia, posso cortar e arranhar um toca-discos, posso arrasar na pista, posso girar a cabeça como você nunca imaginou.'"

"Os meninos estavam criando seu próprio universo, apenas com dois toca-discos, um microfone e um linóleo", ele conta.

Fenômeno mundial

Enquanto Holman fazia música, filmava e absorvia a energia de Nova York, ele imaginava se o pequeno cenário do breaking e do hip hop da cidade se tornaria uma tendência emergente, como o punk que havia florescido em Londres e em Nova York na década anterior.

"Um amigo meu havia estudado com Malcolm McLaren [o empresário da banda Sex Pistols] nos anos 1960", conta Holman.

"Quando McLaren visitou Nova York, eu o convidei para uma festa no Bronx com [os DJs] Afrika Bambaataa e Jazzy Jay. Eu o levei a um parque cheio de gente, onde os DJs tinham seus sistemas de som e os meninos e meninas dançavam."

"Malcolm ficou surpreso e me pediu para fazer uma análise. Bem, eu fiz", segundo Holman.

McLaren tinha um bom instinto para movimentos culturais revolucionários. A banda britânica Sex Pistols havia se tornado um ícone do punk depois do lançamento do single antimonarquista God Save the Queen, que coincidiu com o Jubileu de Prata da Rainha Elizabeth 2ª, em 1977.

Ele colocou Holman em contato com uma promotora inglesa que morava na cidade, chamada Ruza "Kool Lady" Blue. Ela promovia uma noite regular na casa noturna NeGril, cujo proprietário era jamaicano.

Em novembro de 1981, a casa noturna fez sucesso com os amigos DJs de Holman e os dançarinos de breaking do The Rock Steady Crew.

Dançarino se apresenta em programa de TV
Os New York City Breakers se tornaram estrelas emergentes do breaking e se apresentaram em programas de TV americanos, como o Soul Train - Getty Images/Via BBC

Quando se espalhou a notícia sobre as noites de hip hop, com o supergrupo recém-formado e suas fantásticas apresentações de breaking nas noites de Holman no NeGril, a imprensa de Nova York também começou a dar destaque.

"Bem, o que estávamos fazendo virou a notícia do mês nos órgãos de imprensa internacionais", afirma ele. "Recebemos equipes de produção de documentários de todo o mundo em Nova York: a BBC, Canal Plus [França], NHK [Japão], Rai TV [Itália] e a ZDF [Alemanha]."

"Eles vinham filmar os Breakers, editavam e mandavam para os seus países de origem. E saía no noticiário naquela noite", ele conta. "Então, você tinha os meninos em Londres, Tóquio e Paris recebendo a cultura do hip hop antes dos meninos de Pittsburgh [nos Estados Unidos]."

Holman decidiu então produzir conteúdo próprio. Ele criou e apresentou o programa musical de TV Graffiti Rock em 1984, dedicado ao hip hop, seguindo a linha do programa de sucesso Soul Train e apresentando as bandas Run-DMC, Kool Moe Dee e Special K, além dos New York City Breakers.

"Foi o primeiro programa de TV sobre o hip hop do mundo", afirma Holman.

Os New York City Breakers também invadiram a grande imprensa do centro dos Estados Unidos. Eles compareceram aos programas Merv Griffin Show (um talk show popular nos EUA), CBS Evening News, Good Morning America e no próprio Soul Train.

O grupo também apareceu em um vídeo musical com seus passos de breaking, enquanto a lenda do soul Gladys Knight cantava "Save the Overtime (For Me)".

O último grande evento promovido por Holman para os New York City Breakers ocorreu na Escola de Dança Contemporânea de Londres, em 1987.

"Naquela época, os shows estavam diminuindo", ele conta. "[O breaking] era visto como uma moda que estava passando. A imprensa havia se afastado e os Breakers começavam a seguir seus próprios caminhos."

Mas, em outros lugares, a festa continuava.

"Como ocorreu com muitos movimentos culturais que começaram nos Estados Unidos, como o jazz, o rock e o blues; eles morrem aqui para encontrar nova vida e identidade no exterior", explica Holman. "O mesmo aconteceu com o breaking."

No final dos anos 1990, Holman recebeu convites para convenções de hip hop em todo o mundo. Havia interesse na Austrália, Ásia, Europa e na América do Sul.

Ele organizou painéis e palestras sobre o movimento, assistiu a filmes sobre o breaking e participou de oficinas de dança, com os dançarinos originais sendo convidados para comparecer.

Um jovem grupo de dança polonês chegou ao ponto de mostrar a ele que havia aprendido uma coreografia com o Graffiti Rock, passo a passo. Mas nem todos os dançarinos eram tão simpáticos.

Outdoor com apresentação de esportes
O breaking é um dos quatro esportes convidados para os Jogos Olímpicos de 2024 em Paris - Getty Images/Via BBC

"Eu costumava receber muitos olhares estranhos de alguns dos dançarinos quando aparecia", afirma Holman. "Eles diziam: 'oh, você é aquele que tentou transformar isto aqui em esporte, tentou matar a forma de arte.'"

"Mas eu sempre senti que o movimento tinha uma ideia e uma vida própria", ele conta. "A própria cultura é senciente. O hip hop, coletivamente, é agora uma indústria multibilionária que abalou o mundo."

"O skate e os esportes radicais enfrentaram as mesmas discussões", segundo Holman. "Houve protestos contra a ideia de uma forma de arte ser 'julgada', com pontos e notas. Estou certo de que a patinação artística sofreu o mesmo nos anos 1930."

"Mas pense no fato de que é um movimento criado na cidade de Nova York — a capital do comércio, o coração do capitalismo. Questionar seu caminho para a competição e a comercialização, no mínimo, é ingênuo."

Discussões à parte, a notável batalha do breaking, das calçadas do Bronx para a arena olímpica, é gratificante para Holman — uma das poucas pessoas que compreenderam o potencial dos passos potentes e da poesia do hip hop, mais de quatro décadas atrás.

Este texto foi publicado originalmente aqui.

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