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Editoras periféricas usam saraus, slams, hip hop e editais para se manter

Com foco em representatividade de autores negros, selos publicam da poesia à fantasia, mas dependem de incentivo

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Matheus Souza
São Paulo | Agência Mural

Nas periferias de São Paulo, onde a maior parte da população é negra e de baixa renda, autores e editoras independentes recorrem a diversas estratégias para manter presença num setor pouco favorável.

Uma pesquisa da UnB, a Universidade de Brasília, coordenada pela professora Regina Dalcastagnè, analisou publicações de três das maiores editoras do país entre 1965 e 1979 e entre 1990 e 2014, e concluiu que a maior parte dos romancistas brasileiros eram homens, brancos, de classe média, heterossexuais e moradores de grandes cidades, algo que se refletiu também no perfil das personagens das obras.

Da vontade de enxergar mais representatividade nas obras surgiram editoras e autores independentes das periferias, que estão tentando mudar o cenário editorial.

"É uma cena que herda a força do hip hop dos anos 1990, mas se intensificou a partir da década seguinte", explica Eleilson Leite, 54, coordenador da área de cultura na ONG Ação Educativa.

Bar do Zé Baridão em 2013, onde era realizado o sarau Cooperifa, em São Paulo - Leonardo Soares/Folhapress

Em 2000, "Capão Pecado", livro do escritor Ferréz, foi publicado pela primeira vez. Abordando a história de jovens do Capão Redondo, na zona sul de São Paulo, a obra foi pioneira de um novo momento para a produção literária fora do circuito tradicional. No mesmo período, ocorria a popularização dos saraus de poesia em bairros periféricos, como o da Cooperifa, fundado em 2001, e o Sarau do Binho, de 2004.

Essa cultura em torno da música e poesia fez crescer o número de leitores e escritores, e o passo seguinte foi buscar a publicação desses novos artistas. O caminho até as editoras maiores continuava praticamente inalcançável, então eles começaram a formar iniciativas próprias nesse sentido.

Um exemplo é o Selo Elo da Corrente, que nasceu do sarau de mesmo nome em Pirituba, na zona noroeste da capital. Como conta a editora Raquel Almeida, de 35 anos, "muitos poetas começaram a frequentar o sarau e tinham obras prontas, paradas, que ninguém tinha condições de publicar".

A primeira leva de publicações aconteceu pelo programa VAI, sigla para Valorização de Iniciativas Culturais, uma política de incentivo da Prefeitura de São Paulo. Em 2008, eles se inscreveram no projeto e conseguiram captar recursos para a publicação de oito livros.

Dentre esses títulos estava "Cordéis e Poesias para Cantar", de João do Nascimento, um dos frequentadores do sarau desde seus primeiros anos. O livro do cordelista representa um dos focos do selo, que, além de publicações relacionadas à cultura negra e de autoria feminina, promove a valorização da herança nordestina, presença forte nas periferias da cidade.

"Nascemos em São Paulo mas somos filhos de nordestinos. A gente percebe isso muito forte na nossa vivência, na nossa cultura, fala, corpo, linguagens", explica Almeida. "Fomos crianças nos anos 1990, sofríamos preconceito por vir de onde viemos, e resgatar isso, a cultura nordestina, foi um dos pontos fortes no início da editora e é algo que ainda levamos adiante."

Desde a fundação, o selo se profissionalizou e segue publicando, mas ainda depende bastante de editais de fomento à cultura. Como outros casos de editoras periféricas, ainda que tenha um público consolidado, o valor das vendas não é suficiente para remunerar todos os profissionais e ainda gerar lucro, e os colaboradores equilibram as funções na editora com outros empregos.

"Não temos poder aquisitivo para nos manter sem esses subsídios", diz Raquel. "Até já aconteceu de ficarmos sem edital e conseguirmos publicar, mas é toda uma dificuldade, precisa tirar dinheiro do bolso."

Ainda na zona norte, no bairro do Limão, a LiteraRUA também tem relação forte com o hip hop e o movimento dos saraus. Nascida em 2012, a editora é um coletivo de autores, como define o fundador Tony C., de 42 anos.

"Sou dessa geração de autores que se autopublica na periferia, e minha mochila sempre foi uma livraria", diz Tony. "Passei a usar ela pra vender meus livros, como fazem os autores do saraus."

A LiteraRUA é ainda uma livraria física e virtual que tem no catálogo tanto obras próprias como de terceiros, desde que alinhadas com o foco editorial: promoção da cultura e pensamento negro e periférico. A venda de livros de outras editoras é uma das estratégias que ajuda a tornar o negócio sustentável.

Dentre os títulos próprios, muitos possuem teor biográfico, trazendo histórias de vida de autores da periferia que reverberam em leitores do mesmo meio, os quais conhecem o cotidiano narrado. Em "Ideias que Rimam Mais que Palavras", de 2018, o rapper Rashid fala de suas composições e momentos marcantes da carreira.

Já dona Jacira, mãe do rapper Emicida, na autobiografia "Café", de 2019, fala sobre a infância e amadurecimento no Jardim Cachoeira e no Jardim Ataliba Leonel, na zona norte da capital paulista. Ela também participou da antologia "Pra Quem Já Mordeu um Cachorro por Comida, Até que Eu Cheguei Longe…", de 2019, inspirada na mixtape de mesmo nome.

A existência de editoras que exercem mais de uma atividade além da publicação de livros, ou que sejam parte de projetos culturais maiores, é comum nas periferias, tanto por necessidade financeira quanto pela riqueza da produção artística nesses territórios.

A Baderna Literária surgiu nos anos 1990 como projeto da então contadora Eliana de Freitas, de 58 anos, do Jardim Ibirapuera, na zona sul. No início, a editora tinha outro nome, e o negócio era voltado à captação de recursos para publicações de outras empresas. Seguiu assim até 2005.

Os artistas que Eliana menciona são seus dois filhos, . Com os filhos Thiago Peixoto de Freitas, de 36 anos, e Carolina Peixoto, de 34, a editora ampliou a atuação —Thiago é um dos fundadores do Slam do 13, e Carol criou o grupo Poetas Ambulantes, que recita poesias e distribui livros no transporte público.

Aos poucos, mais iniciativas foram incorporadas, como a Liga Sul de Poesia Falada e o Slam das Minas SP, do qual uma das fundadoras, Pam Araújo, acabou tornando-se sócia da Baderna. Desse modo, a empresa se transformou numa grande agência cultural.

Hoje, grande parte dos títulos publicados têm relação direta com esses outros projetos, como "A poesia é quem vence", de 2022, antologia do Slam do 13, e "A Língua Quando Poema/La Lengua Cuando Poema", também de 2022, obra bilíngue que surgiu da Jornada Latines, promovida em 2021 com competições de poesia e oficinas feitas por artistas de nove países da América Latina.

No Grajaú, também na zona sul, o Selo Capsianos foi criado em 2016 como parte da ONG fundada por Maria Vilani, o CAPSArtes, que atua na região há mais de trinta anos. O selo busca ser uma editora-escola, mais voltada para o ensino do que para a publicação em si.

Como conta Alessandra Silveira, de 47 anos, artista gráfica e voluntária da ONG, isso é feito por meio de ateliês literários em que qualquer pessoa que tenha interesse na escrita pode participar.

"É muito diferente da dinâmica mercadológica, em que cada um faz uma coisa. Lá, todo mundo que participa tem a oportunidade de conhecer como é o processo editorial", diz.

Mesmo que o foco não seja esse, o Selo Capsianos já publicou sete livros, dentre eles o romance adolescente "Tudo é Problema com o Bruno", de 2016, escrito por Vinicius Rossato, desenvolvido nos ateliês de escrita.

Embora falte muita coisa no sentido de diversificar as obras que recebem maior atenção e investimento no mercado literário, as editoras concordam que o cenário é promissor.

Hoje, encontrar livros de autores e autoras mulheres, negras e de fora da região sudeste do país é bem mais fácil do que há dez ou vinte anos, e as editoras periféricas contribuem não apenas publicando obras ignoradas pelo circuito tradicional, como também olhando para o futuro e apontando novos caminhos.

A Kitembo Literatura surgiu em 2018 na Brasilândia, na zona norte, focada em publicar autores negros de literatura fantástica. O fundador, Israel Neto, 35, conta que ele e os colegas sempre foram ligados à cultura pop, mas viam-se pouco representados nos lugares que frequentavam. Enquanto os saraus eram focados em outros gêneros literários, nos espaços voltados ao mundo geek quase não havia pessoas negras.

"A gente entendeu que os saraus, a literatura periférica, também eram uma bolha. Depois fomos participar de feiras e festas literárias, clubes de leitura de ficção científica, lançamento de livros, e constatamos que a nossa gente também não estava lá", diz.

A solução, então, foi encontrar e publicar por conta própria as narrativas que gostariam de ver mas não encontravam em outros lugares. Lançaram, dentre outros, a ficção científica "Os Planos Secretos do Regime", de 2019, escrita pelo próprio Israel com Diego Dgoh, que se passa no período da ditadura militar brasileira e é protagonizada por jovens negros.

Teve também o thriller "Crianças nas Sombras", de 2021, de Hedjan CS e Amora Moreira, ambientado na zona norte do Rio de Janeiro, além de antologias afrofuturistas que reúne escritores e histórias de diferentes estilos.

Seguindo outra característica de grande parte das editoras periféricas, as obras são vendidas principalmente por meio de sites próprios, eventos ou livrarias especializadas. Isso porque o comércio via lojas maiores e grandes sites de varejo exige produção em larga escala ou descontos no preço dos livros, que raramente são viáveis para empresas pequenas.

"Existem cânones da literatura brasileira extremamente racistas e estereotipados que não chegaram na grande massa sendo comprados, mas foram colocados lá, chegaram de outras maneiras", comenta Israel. "Nós pensamos em como fazer esse mesmo movimento para disputar esse imaginário, trazendo outra perspectiva, outro legado."

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