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'Ideia de que Espanha não é racista é um velho mito franquista', diz antropólogo

Para professor da Universidade de Madri, memória mal resolvida da ditadura estimula preconceito

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São Paulo

Um aluno negro do professor Fernando Barbosa Rodrigues no departamento de Antropologia Social da Universidade Complutense de Madri lhe contou que foi obrigado a abandonar seu emprego como segurança em um shopping de luxo na capital espanhola porque foi orientado pelos patrões a redobrar a atenção com clientes de pele escura.

Afrodescendentes que querem alugar apartamento nas grandes cidades espanholas costumam ter muito mais dificuldade, o que motivou uma campanha do Ministério da Igualdade do país ("Não sou racista, maaaaaaas não alugas tua casa a uma pessoa negra", diz o slogan), assim como os que buscam emprego.

O próprio professor Barbosa –um português filho de cabo-verdianos nascido em Luanda, "café-com-leite", como diz, que mudou-se para Lisboa aos 12 anos fugindo da guerra civil angolana– foi recentemente abordado por dois policiais na Puerta del Sol, praça histórica no coração de Madri, sob a alegação de que em seu entorno exalava um cheiro de maconha. "Quando os questionei por que escolheram logo a mim para ser parado, eles retrucaram: ‘Ah, o senhor está nos chamando de racistas?'".

O antropólogo Fernando Barbosa Rodrigues, professor do Departamento de Antropologia Social e Psicologia Social da Universidade Complutense de Madrid, que coordenou estudos sobre a população afrodescendente na Espanha
O antropólogo Fernando Barbosa Rodrigues, professor do Departamento de Antropologia Social e Psicologia Social da Universidade Complutense de Madrid, que coordenou estudos sobre a população afrodescendente na Espanha - José Luis Simón

A negação dos policiais é a mesma que espalhou-se pela sociedade espanhola como reação às evidências de que o racismo contra o jogador brasileiro Vinicius Junior não se limita aos estádios do país. Refutar parece inútil, pois a Espanha é sim um país racista, afirma Barbosa. O antropólogo –um dos retratados numa exposição sobre afrodescendentes na Espanha em cartaz no Museu Nacional de Antropologia de Madri– coordenou em 2020 um estudo para tentar quantificar e conhecer a população negra do país.

Trata-se de um esforço isolado do observatório do racismo e da xenofobia ligado ao governo, já que o Estado espanhol, como ocorre na maioria dos países europeus, não coleta dados estatísticos sobre raça/etnia de seus habitantes, uma lacuna tida como obstáculo na luta contra o preconceito racial.

Barbosa aponta o Brasil como referência nessa cruzada, sustenta que a Espanha é sim um país racista e associa o fenômeno ao passado colonial e ao entulho da ditadura de Francisco Franco, que vigorou de 1939 a 1975.

A Espanha é um país racista? Sim, é racista. A ideia de que a Espanha não é um país racista é um velho mito franquista. O franquismo deu a ideia de que a Espanha, tal qual Portugal, tinha uma vocação mundial. Durante sete séculos houve aqui gente africana. Os negros não chegaram à Espanha ontem, nas tropas muçulmanas que ocuparam a Espanha por sete séculos [711 a 1492] havia gente de pele escura. O que ocorre é que foram inviabilizados historicamente e desapareceram no relato. Se a Espanha não fosse racista, tínhamos que dizer que esse episódio [de Vinicius Junior] tinha que ver com falta de educação, falta de espírito esportivo. Falei com árbitros que me disseram: não é tudo racismo, é uma maneira de desconstruir a força do teu oponente, buscando coisas que podem ofender. Mas como vou ofender um negro chamando-lhe de macaco, se nós todos descendemos do macaco?

Mas decerto o racismo não nasceu com Franco. Quais as raízes históricas do racismo espanhol? Qual sua conexão com o passado colonial do país? Sim, há vários estágios. O primeiro seria a negação e o falso mito da reconquista contra os muçulmanos. Todo o sentimento antimuçulmano foi um primeiro ato de racismo e de limpeza étnica, para dizer que a Espanha é branca e cristã. O segundo estágio é a expansão colonial marítima, a batalha que a Espanha e Portugal encaram como uma missão cristã e civilizadora.

Volto à ideia franquista, porque o retorno à democracia tem 46 anos, mas o país ainda não resolveu sua história colonial. Portanto você vê essas manifestações em atos discriminatórios cotidianos, como ocorre com Vinicius. A pessoa que o chama de macaco aprendeu na escola que os negros, os índios, os amarelos eram inferiores a ele. Quando você não corrige isso nos livros escolares, a pessoa pensa: eu não sou racista, mas eles não têm a mesma capacidade que eu, e aí entramos no campo da supremacia europeia ou supremacia branca.

A pessoa que o chama de macaco aprendeu na escola que os negros, os índios, os amarelos eram inferiores a ele. Quando você não corrige isso nos livros escolares, a pessoa pensa: eu não sou racista

Fernando Barbosa Rodrigues

antropólogo, professor da Universidade Complutense de Madrid

O presidente da LaLiga, Javier Tebas, é eleitor do partido ultradireitista Vox. Isso ajuda a explicar a reação débil das autoridades esportivas em relação ao racismo? Agora você pode fazer perfeitamente a conexão com esses restos do mito franquista que são capazes de afirmar uma coisa e negá-la no minuto seguinte. As ligações desse senhor com o Vox já são denunciadoras de que ele não é trigo limpo.

Quando se fecha os olhos e olha para outro lado e diz "como a Espanha não é racista, tudo bem", e resumem o problema a um ou alguns indivíduos. Mentira. Este indivíduo está apoiado por uma massa de pessoas que gritaram "macaco"

Fernando Barbosa Rodrigues

antropólogo

Como episódios de racismo nos estádios se inserem num quadro mais geral de racismo na Espanha? Há mais racismo nos estádios que nas ruas? Sim, porque a concentração de massas, o anonimato e a paixão que o futebol desata também desata nossos piores fantasmas. E, portanto, num estádio você pode ver grandes manifestações de solidariedade como pode ver o pior de nossa sociedade. E o pior da nossa sociedade também está metido no futebol, esses hooligans que apoiam seus clubes até à morte, [torcidas] em que estão infiltrados neonazistas e integrantes da extrema direita, usam os jovens como caldo de cultivo de sua imoralidade, porque o racismo é uma imoralidade, e as pessoas que o cometem dão rédea solta ao pior do ser humano. Antes de Vini, Eto'o e muitos outros foram vítimas de racismo. [O ex-técnico da seleção espanhola] Luis Aragonés, espécie de herói nacional, calou contra atitudes e declarações racistas. Primeira reação é defensiva, negamos, não existe. Espanha não é racista, e por não ser racista, aqui há um "episódio", um "incidente crítico". Mentira. O incidente crítico ocorre porque o racismo estrutural e sutil está metido até os ossos. Quando se fecha os olhos e olha para outro lado e diz "como a Espanha não é racista, tudo bem", e resumem o problema a um ou alguns indivíduos. Mentira. Este indivíduo está apoiado por uma massa de pessoas que gritaram "macaco".

A concentração de massas, o anonimato e a paixão que o futebol desata também desata nossos piores fantasmas. E, portanto, num estádio você pode ver grandes manifestações de solidariedade como pode ver o pior de nossa sociedade

Fernando Barbosa Rodrigues

antropólogo

É possível comparar o que viveu Vinicius nos estádios com o que vivem afrodescendentes diariamente? O que Vini viveu nos estádios é uma exposição aumentada dos pequenos "incidentes críticos" que todos os dias uma pessoa de origem não branca na Espanha pode sofrer. Por exemplo, ser parada mais vezes pelo perfil racial.

Por que só agora, depois de incontáveis episódios de racismo, houve alguma atitude por parte das autoridades? Os astros coincidiram. O grande presidente Lula da Silva veio recentemente à Espanha e a Portugal. Quando Lula –que deu maior projeção ao Brasil, goste-se dele ou não– falou disso num palco internacional [na reunião do G7 no Japão], afetou a boa imagem que a Espanha quer ter no consórcio internacional.

Acha então que a declaração de Lula contribuiu para provocar a ação das autoridades espanholas? Foi importantíssima, desatou tudo, pôs contra a parede as incongruências da esquerda e do governo socialista. Expôs a inoperância e a falta de coragem da esquerda socialista no governo em enfrentar este tema. Dou graças a Deus que o presidente Lula tenha dito isso. Agora está aqui um escândalo que você não pode imaginar. As notícias não param, os telejornais abrem com notícias de Vinicius, ontem todo mundo vestia a camisa 20 de Vinicius, é Vini, Vini, Vini, na rodada de futebol exibiram faixas "Racistas, fora do futebol".

Em que medida a falta de dados sobre a população afrodescendente atrapalha no combate ao racismo? Em tudo. Obstrui, não nos permite chegar ao detalhe para poder saber onde se concentram e como combater manifestações de discriminação. O Brasil avançou com passos de gigante e virou uma referência para todos na luta contra o racismo, enfrentando o problema com legislação contra crimes de ódio, injúria, tipificação de atos racistas. A Europa está 200 anos atrás do Brasil, deve ser orgulho para a nação brasileira o que vocês conseguiram. Nós estamos tendo de forçar o debate na Europa, que olhemos para o exemplo do Brasil. O problema da supremacia europeia é que sempre olha para as nações do Sul como se não pudessem lhes ensinar nada. São capazes de dizer que o Brasil foi o último país a abolir a escravidão, que o Brasil tem racismo. Muito bem, mas o Brasil está a fazer os seus deveres.

E nisso culpo também a esquerda espanhola, covarde e imoral. Pensar que ser de esquerda é [automaticamente] não ser racista é um mito. Você pode ser perfeitamente progressista e não ter feito o dever de casa para resolver os seus preconceitos raciais. Por isso estamos à espera de uma lei contra o racismo que ficou engavetada, uma iniciativa do Podemos [partido de esquerda que integra a coalizão governista] fruto de uma consulta a afrodescendentes e sociedade em geral. Essa lei não saiu porque o PSOE [do premiê Pedro Sánchez] e o Podemos não entram em acordo, têm medo de enfrentar a direita e a extrema direita, porque são leis que perturbam. Dizem que vão prejudicar o debate político, porque o que tem de se falar é dos empregos. Como se abrir mão de enfrentar as desigualdades, inclusive no plano racial, pudesse resolver os outros conflitos.

O Brasil avançou com passos de gigante e virou uma referência para todos na luta contra o racismo, enfrentando o problema com legislação contra crimes de ódio, injúria, tipificação de atos racistas. A Europa está 200 anos atrás do Brasil, deve ser orgulho para a nação brasileira o que vocês conseguiram

Fernando Barbosa Rodrigues

antropólogo

Integrantes da comunidade jurídica espanhola ouvidos pela Folha defendem que a punição aos episódios de racismo nos estádios deveriam ser no âmbito esportivo e não no âmbito penal. Concorda? Não concordo. A judicatura da Espanha tem que fazer um aggiornamento [atualização], porque o mundo mudou. É exatamente a mesma tensão que temos com os juízes que não querem reconhecer os avanços e exigências que o feminismo trouxe contra violência de gênero e o machismo. Os que se opõem têm que voltar a estudar, têm que voltar às carteiras da escola. Porque o mundo mudou, e a complexidade das nossas sociedades cada vez mais diversas exige uma resposta clara nos planos penal, político e jurídico. Todos têm que viver em paz, as sociedades têm que viver na base da confiança, e quem destrói a confiança porque crê que pode dizer que o outro é um macaco também tem de ter um castigo no plano moral, uma reeducação para a convivência.


RAIO-X

Fernando Barbosa Rodrigues, 59 anos
Professor associado do Departamento de Antropologia Social e Psicologia Social da Faculdade de Ciências Políticas e Sociologia da Universidade Complutense de Madri. Entre seus temas de pesquisa estão política linguística, pós-colonialismo, questões de raça, etnicidade e miscigenação em Portugal e Espanha. Coordenou o "Estudo para o reconhecimento e caracterização da comunidade africana e afrodescendente" da Espanha. Nascido em Luanda (Angola), mudou-se aos 12 anos para Lisboa e vive em Madri.

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