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Arábia Saudita: fama e dinheiro devem dar liberdade a Neymar em país de leis restritivas

Jogador vai morar em condomínio de luxo, com regras semelhantes às quais está acostumado

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São Paulo

Depois de ter sido seduzido por um contrato pelo qual receberá 320 milhões de euros (R$ 1,7 bilhão) em duas temporadas e apresentado de forma apoteótica pelo Al Hilal no sábado (19), Neymar deu início àquela que será a maior mudança cultural de sua carreira.

O brasileiro deixou Paris, na França, onde vivia desde 2017, para morar em Riad, capital da Arábia Saudita, sede de seu novo clube.

Com mais de 7 milhões de habitantes, a cidade é regida por leis islâmicas, que proíbem hábitos comuns em países do ocidente, como consumo de álcool e demonstrações públicas de afeto. Há também um rigoroso código de vestimenta para mulheres, e a homossexualidade é considerada um crime.

Porém, como principal estrela do time mais vitorioso do país, Neymar, assim como seus familiares e amigos, deverá usufruir de privilégios, como viver em um condomínio privado, com regras semelhantes às ocidentais, com menos restrições.

Neymar durante festa de apresentação no Al Hilal
Neymar durante festa de apresentação no Al Hilal - Fayez Nureldine - 19.ago.23/AFP

Com base nas escolhas de outros astros do futebol que mudaram recentemente para a Arábia Saudita, como Cristiano Ronaldo, duas áreas têm mais chances de atrair o jogador,

A primeira é o bairro de Al Muhammadiyah, famoso por restaurantes sofisticados. A segunda é o de Al Nakheel, procurado por famílias em busca de escolas internacionais. Ambos foram construídos como minicidades, com toda a infraestrutura necessária para os residentes, como escolas, hospitais, shoppings, academias e restaurantes.

Os dois bairros possuem uma paisagem semelhante, tomados por inúmeros prédios e construções que misturam modernidade com lugares históricos.

Os territórios foram planejados justamente para facilitar a convivência de famílias estrangeiras, que dificilmente precisam deixar os condomínios. Neles, estão longe dos olhos, por exemplo, da polícia religiosa de Mutaween, que tem autoridade para vigiar, sobretudo, as mulheres.

Entre as restrições para as sauditas estão falar com homens que não façam parte de suas famílias, trabalhar ou abrir uma empresa sem a permissão de um homem, viajar ao exterior sem um guardião e ter a guarda dos filhos em caso de divórcio.

Recentemente, contudo, ainda que relativamente tímidos, houve avanços. Desde 2018, elas passaram a ter permissão de frequentar estádios, no mesmo ano em que também ganharam o direito de dirigir.

"Dependendo do bairro e da convivência que ele tiver, o Neymar terá mais ou menos restrições. Mas eu não vejo isso como um problema", afirma à Folha a antropóloga Francirosy Campos Barbosa, pós-doutorada pela Universidade de Oxford em Teologia Islâmica.

Para ela, a mídia ocidental tende a mostrar que pessoas como o jogador não conseguem viver na Arábia Saudita. "Mas não estamos falando de operários. Estamos falando de um jogador que ganhará um salário milionário e que terá acesso a coisas que um cidadão comum não teria."

A pesquisadora diz, ainda, que, dentro desses condomínios de luxo, sobretudo em sua casa, Neymar terá liberdade, por exemplo, para fazer festas e para praticar sua religião.

Neymar é cristão e tem diversas tatuagens com referências religiosas. Após conquistar a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016, posou com uma faixa com os dizeres "100% Jesus".

Francirosy explica que a Península Arábica é considerada sagrada para os muçulmanos, o que impede construções que não sejam islâmicas. "É como querer construir uma mesquita dentro do Vaticano", compara a antropóloga.

De acordo com a professora Arlene Elizabeth Clemeshao, doutora de história árabe do Departamento de Letras Orientais da USP (Universidade de São Paulo), isso não significa que as pessoas não muçulmanas que estão vivendo na Arábia Saudita, em sua grande maioria em condomínios luxuosos, não possam praticar suas religiões.

"Existem mais problemas entre diferentes correntes do próprio islã do que com o cristianismo", diz.

Fora das propriedades luxuosas, porém, a monarquia absolutista da Arábia Saudita não permite liberdade religiosa, e a conversão ao cristianismo é proibida por lei, passível de punição com pena de morte.

Os cristãos são proibidos de expressar-se livremente até mesmo dentro das casas, que são inspecionadas pela polícia da fé. Sinais de culto podem causar a expulsão do país.

A mídia constrói uma monstruosidade em relação aos cidadãos da Arábia Saudita. Uma coisa é o governo saudita, a administração, o poder, o reinado saudita e a monarquia saudita. Outra coisa é o povo: como o povo vive, no que o povo acredita. É um povo receptivo, é um povo alegre

Francirosy Campos Barbosa

Pós-doutorada pela Universidade de Oxford em Teologia Islâmica

Recentemente, Cristiano Ronaldo protagonizou uma cena que chamou a atenção. Ao festejar um gol pelo Al Nassr, clube que defende desde a temporada passada, o craque fez o sinal da cruz, um símbolo do cristianismo. A cena ocorreu durante duelo contra o Al Shorta, do Iraque, pela Copa dos Campeões Árabes.

Assim como Neymar, o português foi contratado a peso de ouro como parte do projeto de "sportswashing" da nação árabe, que gasta bilhões por meio do futebol para melhorar sua imagem e aumentar a influência geopolítica.

Por isso, ele tem sido tratado com certos privilégios. O astro, por exemplo, não é casado oficialmente com Georgina Rodríguez, com quem tem dois filhos. Eles cuidam juntos dos outros três filhos do atleta. Pelas leis islâmicas, a situação é irregular.

"Em países fundamentalistas, como é o caso da Arábia Saudita, não é permitido que um homem e uma mulher vivam juntos se não são casados. Nem o namoro é permitido", explica Arlene Elizabeth Clemeshao.

De acordo com fontes do governo saudita ouvidas pela agência EFE, Cristiano Ronaldo não será punido justamente por sua condição de estrela do futebol e por morar nos condomínios privados.

Neymar deve contar com privilégios semelhantes —ele também mora junto de sua noiva, Bruna Biancardi, que espera um filho dele—, mas não terá uma vida irrestrita. Conhecido por promover grandes festas, ele poderá ter problemas com o consumo de bebidas alcoólicas em sua casa, já que as leis islâmicas proíbem esse tipo de consumo.

Segundo profissionais brasileiros que atuam na Arábia Saudita, isso não é algo que poderá mudar em um futuro próximo.

"A questão religiosa em relação ao consumo de álcool e aos costumes locais é muito bem preservada", diz o técnico Péricles Chamusca, atualmente à frente do Al Taawoun, o quinto clube que ele treina no país, onde mora desde 2018.

"De fato, dentro dos condomínios, a cultura é de fora, mas a única questão que se mantém é a restrição à bebida. É a única regra que prevalece em qualquer lugar do país", ressalta.

Para o também treinador Geninho, que teve duas passagens pela Arábia Saudita ao longo de sua carreira, em 1993 e em 2005, ainda que possam ser vistos avanços, os sauditas terão de abrir mão de muitos aspectos de sua cultura caso queiram sediar uma Copa do Mundo, conforme os planos da monarquia.

"Eu acho que em relação ao álcool eles não vão abrir mão. São mais rígidos do que o Qatar, onde a gente viu que essa questão gerou problema. Com a ida de grandes jogadores para o Campeonato Árabe, talvez isso mude um pouco a cabeça deles. Mas tudo lá é comandado pela religiosidade", afirma Geninho.

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