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Com a adesão à SAF, o Fortaleza inovou em gestão e negócios

Como um Estado bem gerido, o clube adquire moral no mercado de crédito para poder investir em voos mais altos

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Preto Zezé

Ativista e empresário, é conselheiro da Cufa (Central Única das Favelas) e membro da FNA (Frente Nacional Antirracista)

Neste artigo quero fazer um paralelo imaginário entre duas coisas sobre as quais nos aconselham a não discutir: futebol e política. Hoje é um grande dia para quem é torcedor como eu. Farei a seguir os devidos esforços para não deixar a emoção tomar conta desse comparativo imaginário a que me proponho, e prometo evitar o clubismo passional. Mas, como amante da política e do futebol, não consigo negar o desejo de compartilhar com vocês o paralelo entre essas paixões.

Mas caindo em campo começo pelo diálogo com o mercado. Leia-se SAF (Sociedade Anônima do Futebol).

Diferentemente dos clubes que aderiam, o FEC (Fortaleza Esporte Clube) não entregou tudo ao mercado. Ele utilizará a SAF para conseguir musculatura e aumentar a sua reputação no mercado, regulando e criando novos paradigmas que fazem o clube dialogar com o mercado sem se render à lógica predatória das SAFs.

Jogadores do Fortaleza comemoram após o empate por 1 a 1 com o Corinthians na partida de ida das semifinais da Copa Sul-Americana, nesta terça (26)
Jogadores do Fortaleza comemoram após o empate por 1 a 1 com o Corinthians na partida de ida das semifinais da Copa Sul-Americana, nesta terça (26) - Marcello Zambrana/AFP

A máquina é enxuta, diferentemente do que acontece na maioria dos clubes e também no aparelho de Estado.

O clube está com poucas dívidas e com capacidade de investimento, apesar de ter um orçamento bem menor do que o de muitos clubes do país, o que demonstra a eficiência do gasto. Como alguns estados brasileiros, clubes são afetados por calotes, falências, folhas em atraso e por máquinas pesadas e ineficientes.

Como um Estado bem gerido, o clube aumenta sua capacidade de crédito e endividamento, ou seja, adquire moral de sobra no mercado de crédito da bola para poder investir em voos mais altos.

A regra básica: quem demonstra ter como pagar, mais crédito recebe.

Com a adesão à SAF no formato em que foi criada, o Fortaleza inovou em gestão e negócios. Os direitos dos atletas, os sócios-torcedores, os contratos comerciais, a bilheteria e outros ativos se somam à reputação mercadológica. E aqui indico o jornalista-boleiro Irlan Simões, que pode discorrer para detalhar o processo e dar um panorama bem bacana.

Máquina enxuta, resultado na entrega e eficiência no gasto tornam o clube atraente para o mercado da bola.

O mesmo acontece com os Estados que têm suas contas organizadas, planos e projetos de governos estratégicos, controle de gastos e investimentos coordenados em cima de avaliação e controle social externo para eleger prioridade —já que não se pode resolver tudo.

Para grandes projetos e voos, o clube está com uma forte retaguarda, e alguns elementos são importantíssimos.

Liderança: o comportamento público e transparente de uma liderança que se mostra apta a construir um plano a longo prazo. Não falo de um gestor, mas do clube em si, de um legado que será deixado e que superará Marcelo Paz, que hoje pilota com excelência essa jornada.

O Fortaleza em momento algum se furtou de se posicionar por agendas importantes, como violência contra a mulher, racismo e homofobia, muitas vezes contrariando seu próprio público, inaugurando, assim, uma trajetória de mudança de mentalidade que vem desde o topo. E vai descendo para a diretoria em todas as suas instâncias, passando pelo elenco e pela comissão via Vojvoda, num processo de atualização a valores condizentes com os acordos civilizatórios mais humanitários.

Interlocução das instâncias: diretoria, comissão técnica, elenco, funcionários do clube e torcida. Como num Estado, seria importante acontecer com secretarias, governadores e/ou prefeitos e a população que o elege —dialogando em conjunto diante de desafios, e sob pressão da avaliação permanente. Dá para entender por que as pessoas se apegam mais ao clube no sentido do afeto e da cobrança do que ao gestor de plantão na sua cidade.

Sem falar que as tensões e a construção de consensos têm conseguido ajudar a organizar a casa e evitar rachas naturais quando um grupo está em evidência.

No caso da transformação do Fortaleza em SAF, o próprio clube elaborou uma regulação para evitar desvios, desmandos, aventuras e personalismos na gestão que possam comprometer o projeto, isso sem se negar a aproveitar talentos individuais em cada espaço

Preto Zezé

conselheiro da Cufa e membro da FNA

Trata-se da arte de não deixar os egos, as vaidades e a soberba atolarem um projeto vitorioso que se ergue em tempos duros de anos na Série C até o auge das boas colocações em competições internacionais.

No caso da transformação do Fortaleza em SAF, o próprio clube elaborou uma regulação para evitar desvios, desmandos, aventuras e personalismos na gestão que possam comprometer o projeto, isso sem se negar a aproveitar talentos individuais em cada espaço.

Instalou uma espécie de "Democracia do Pici" (local de origem do Fortaleza), onde as decisões precisam atender a critérios das instâncias decisivas e a maioria dos sócios aptos a votar tem total soberania nas decisões.

Ampliou a transparência, o controle social e a decisão em mais instâncias. O exemplo poderia ser seguido pelo Estado brasileiro: ampliar seus espaços de decisão, estender as formas de participação, qualificar a participação e o engajamento. Assim, quem sabe, evitaríamos que políticos e gestores, ao chegarem à direção da máquina pública, não agissem à revelia dos interesses da população.

A relação com o mercado é outro atributo: o mercado não é mais um fim em si, como muitos clubes pensam, mas um meio. O Fortaleza escancara a real relação entre mercado e Estado, uma relação cheia de mal-entendidos. Se de um lado acusam o Estado de ser ineficiente, apesar da suas benesses para o setor privado, do outro demonizam o setor privado. A SAF do Fortaleza quer unir o melhor de ambos.

Se isso estivesse acontecendo em clubes do sul e do sudeste, ganharia olhar mais apurado e os exemplos aqui citados estariam sob holofotes nacionais. Vai dar certo? Como com as incertezas da economia, o futebol também navega por mares turbulentos.

Neste momento, o clube avança, inspira e dá exemplo. Segundo bem lembrado por minha amiga Milly Lacombe, só o Palmeiras conseguiu seguir tal trajeto de recuperação e posicionamento.

O Fortaleza, depois de toda essa trajetória de sacrifícios, sofrimentos, lutas e glórias, sabe que o jogo de hoje é duro, guerreado, decisivo. E eu, como torcedor apaixonado pelo futebol e pela política, sei que esse legado não está sujeito às dificuldades do momento, nem aos desafios do futuro. Existe um projeto em curso: avaliar o passado para não cometer os mesmos erros, viver o presente com pés no chão, dedicação, seriedade e olhar alargado com metas ambiciosas.

Esse caminho se tornou não um projeto de gestores, mas uma cultura corporativa. O correto seria termos políticas na gestão pública nas quais a sociedade sentisse que o Estado participa e pertencente à sua vida —afinal, o sócio-torcedor e o contribuinte são depositários de receitas e fé. A diferença é que um recebe do ponto de vista afetivo, simbólico e de reputação, e o outro se sente injustiçado e desamparado.

O Fortaleza e sua SAF mostram uma alternativa de rota. Um recado que, como um bom vento, bate a partir do nordeste para o sudeste, depois para o Brasil e para o mundo: a noção de que a vida pede paixão, razão e criatividade em doses iguais. E isso o Fortaleza tem de sobra.

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