Descrição de chapéu basquete

NBA só ficou mais sofisticada em seu atraso, afirma Mahmoud Abdul-Rauf

Marginalizado da liga nos anos 90 por protestos, ex-jogador diz que única mudança de lá para cá foi o verniz progressista

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São Paulo

A NBA é, na comparação com outras ligas profissionais dos Estados Unidos, geralmente apontada como progressista. Especialmente quando o parâmetro estabelecido é a quase abertamente reacionária NFL, do futebol americano, o campeonato de basquete e seus dirigentes parecem ao menos mais abertos a conceitos modernos e a movimentos de mudança da sociedade.

Para Mahmoud Abdul-Rauf, trata-se apenas de uma capa. Segundo o ex-jogador de 54 anos, que vivenciou o conservadorismo da liga nos anos 90, "nada realmente mudou" de lá para cá. "Não melhorou nada. Só há uma impressão de que melhorou", afirmou à Folha. "Eles só ficaram mais engenhosos e sofisticados."

Abdul-Rauf, em 1996, quando defendia o Denver Nuggets, deixou de se levantar para a execução do hino norte-americano antes das partidas. Convertido ao islamismo –o que o fez abdicar do nome de batismo, Chris Jackson– dizia não poder ser ao mesmo tempo "por Deus e pela opressão". Segundo ele afirma hoje, a bandeira dos Estados Unidos não representava seus princípios.

Mahmoud Abdul-Rauf, ex-jogador da NBA
Para Mahmoud Abdul-Rauf, NBA 'não é totalmente honesta' - Divulgação

Após algum tempo, a liga percebeu e se incomodou. Então dirigida pelo linha-dura David Stern, suspendeu o jogador e o multou. Depois disso, ele topou ficar de pé durante o hino, mas sempre de olhos fechados, fazendo suas orações.

Mahmoud seria em seguida negociado, em troca com o Sacramento Kings. Duas temporadas depois, com menos de 30 anos, estava fora do campeonato. Teve breve retorno em 2001, no Vancouver Grizzlies, já ciente de que suas palavras custaram dinheiro. "Perdi milhões", repetiu diversas vezes.

David Stern não está mais vivo. O comissário foi sucedido por Adam Silver, visto como um dirigente mais antenado aos tempos atuais. Em 2020, após o brutal assassinato de George Floyd e suas repercussões, pressionado, liberou o uso de mensagens nos uniformes. Mas os jogadores tinham que escolher a partir de uma lista preestabelecida de frases, como "vidas negras importam".

"É positivo encorajar as pessoas a dizer que a vida das pessoas importa. Mas essa mensagem pré-aprovada não faz grande justiça ao tema", disse Abdul-Rauf. "A NBA se apresenta como progressista, diz que os atletas podem falar. Mas, quando atletas querem falar sobre um assunto que a incomoda, por mais verdadeiro que seja, ela repreende. ‘Você pode papagaiar o que nós queremos que você diga’, sabe? Eles não são totalmente honestos. E é com isso que tenho um problema."

Russell Westbrook, então no Houston Rockets, exibe uma das mensagens pré-aprovadas pela NBA após a morte de George Floyd: "Black lives matter" - Mike Ehrmann - 2.ago.20/AFP

A NBA agiu, nos últimos anos, em casos de abuso. Donald Sterling, por exemplo, foi forçado a vender o Los Angeles Clippers, em 2014, após a divulgação de áudios de conteúdo explicitamente racista. Mais recentemente, no ano passado, também o Phoenix Suns teve de ser vendido por Robert Sarver quando veio à tona toda uma rede corporativa de assédios, racismo e misoginia.

A questão é: a liga se mexeu por princípio ou por relações públicas, por proteção de sua imagem? Mahmoud Abdul-Rauf não parece ter dúvidas.

"Se eles realmente fossem honestos sobre injustiças… Você tem uma pessoa como Craig Hodges, certo? Ele foi maltratado na NBA. Você vê minha situação. E há muitos outros. Não estou pedindo nada. Mas David Stern não está mais na liga, e estão dizendo que o Adam Silver é muito mais progressista. Por que não envolver pessoas como Craig Hodges nas discussões, se você realmente está preocupado com injustiças?"

Hodges, homem negro, um arremessador de alta precisão, detentor do recorde de 19 acertos seguidos na anual competição de três pontos da liga, foi outro que perdeu espaço por seu ativismo. Bicampeão com o Chicago Bulls, em 1991 e 1992, foi escanteado depois de ter proposto boicote a um jogo das finais em resposta ao espancamento de Rodney King pela polícia de Los Angeles.

"Ele deveria estar envolvido nas conversas. Você deveria acionar essas pessoas para mostrar que não tem o mesmo tipo de comportamento dos seus predecessores, para mostrar que está realmente trabalhando em mudanças", observou Mahmoud.

O norte-americano, nascido em 1969 no hoje ainda racista estado do Mississipi, não é exatamente otimista. Ele cita o autor Christopher Hedges para descrever o conceito da "narrativa do perpétuo progresso". "Não é que não tenha havido nenhum progresso. Mas você olha o cenário geral, de saúde, de educação, de pobreza, de crise global com guerras, de questões climáticas, e vê que as coisas não mudaram de maneira substancial."

Isso não desencoraja Abdul-Rauf. Ele usa repetidamente a palavra "relentless", de não tão fácil tradução, um adjetivo que aprecia. A pessoa deve ser implacável, obstinada, em relação àquilo em que acredita. Assim, mesmo em um sistema desenhado para silenciar negros, ele observa com reserva atletas que se calam diante de injustiças.

É uma crítica comum aos principais nomes do futebol brasileiro. Mas é justo criticá-los?

"Acho que, independentemente das nossas profissões, nós somos seres humanos que dividimos esta experiência humana na Terra. [A escritora indiana] Arundhati Roy tem uma frase que ressoa em mim. Ela diz que, uma vez que você viu algo, não pode desver", afirmou.

"De um jeito ou de outro, somos responsáveis pelos nossos atos. E muito é esperado daqueles aos quais muito foi dado", disse, referindo-se aos esportistas que, com seu talento, ganharam uma plataforma para apresentar suas ideias. "Todos vemos coisas. Quando alguém vê algo e decide se calar, como diz Arundhati, essa pessoa tem responsabilidade. É o silêncio que permite que as coisas se perpetuem."

Punido, Abdul-Rauf passou a rezar durante o hino dos EUA - Soctt Olson - 15.mar.96/Reuters

Mahmoud falará sobre isso com jovens brasileiros a partir deste sábado (23). O norte-americano conduzirá clínicas de basquete em unidades do Sesc-SP até o dia 29. Principal convidado do evento Semana Move, vai dar dicas de arremesso –com a obsessão, ligada à sua síndrome de Tourette, que o fez um armador melhor. E vai dizer aos jovens que, além de jogar, eles devem pensar e falar.

"É sempre maior do que um jogo. Nós vamos desafiá-los na quadra, mas vamos desafiá-los em outras áreas da vida, incentivá-los a pensar de maneira crítica. É incrível como você pode mostrar coragem competindo em uma quadra, mas nós não transferimos isso para outras áreas", disse o ex-jogador.

"O basquete e o esporte exigem disciplina, administração de tempo, comunicação e tantas outras coisas. Então, como você transfere isso do esporte para ser uma pessoa politicamente consciente, vocal e social? Todo o mundo tem algo que o irrita como ser humano? Eu diria: ‘Vá nessa direção’. E use essa energia para a sua vida."

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