Condenações do Fifagate estão ameaçadas por questionamentos a excessos da Justiça dos EUA

Ex-presidente da CBF José Maria Marin e outros ex-dirigentes tentam anular sentenças e multas; mudança pode beneficiar também Teixeira e Del Nero

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Rebecca R. Ruiz Tariq Panja
Nova York | The New York Times

Quase uma década depois de policiais terem retirado autoridades do futebol mundial de um hotel de luxo em Zurique (Suíça) ao amanhecer, revelando um escândalo de corrupção que abalou o esporte mais popular do mundo, o caso está sob risco de desmoronar.

A reviravolta ocorre devido a questionamentos sobre um eventual exagero dos promotores americanos ao aplicar a lei dos Estados Unidos a um grupo de pessoas, muitas delas estrangeiras, que defraudaram organizações internacionais ao realizar esquemas de suborno em todo o mundo —o caso ficou conhecido como Fifagate.

A Suprema Corte dos Estados Unidos limitou no ano passado uma lei fundamental para o caso. Pouco depois, em setembro, um juiz federal anulou as condenações de dois réus ligados à corrupção no futebol, citando esse fato.

Agora, vários ex-dirigentes, incluindo alguns que pagaram milhões de dólares em multas e cumpriram pena de prisão, estão argumentando que os esquemas de suborno pelos quais foram condenados não são mais considerados crime no país. Encorajados pelas condenações anuladas, estão pedindo que seus registros judiciais sejam apagados e seu dinheiro seja devolvido.

Dirigentes da FIFA foram presos em hotel na cidade de Zurique (Suíça), em maio de 2015, sob acusação de corrupção.
Dirigentes da FIFA foram presos em hotel na cidade de Zurique (Suíça), em maio de 2015, sob acusação de corrupção. - Arnd Wiegmann - 27.mai.15/Reuters

As esperanças estão ligadas aos casos de setembro. Aqueles dois réus se beneficiaram de duas recentes decisões da Suprema Corte que rejeitaram a aplicação da lei em questão nos casos de futebol.

Os réus haviam sido considerados culpados de envolvimento em um esquema de suborno que privou organizações fora dos Estados Unidos dos serviços honestos de seus funcionários, o que constituía fraude na época. Mas o juiz decidiu que as novas orientações da corte significavam que essas ações não eram mais proibidas pela lei do país.

Contestado pelos promotores federais em Nova York, esse golpe no caso poderia transformar uma história sobre a corrupção arraigada no futebol mundial —detalhada em uma acusação de 236 páginas e comprovada por 31 declarações de culpa e quatro condenações em julgamento— em uma outra história sobre o longo braço da justiça americana indo longe demais.

"É bastante significativo, já que o juiz rejeitou a teoria básica do governo [acusação]", disse Daniel Richman, ex-promotor federal e professor de direito da Universidade de Columbia. Ele classificou a nova interpretação como "surpreendente, mas bem fundamentada".

Os promotores da procuradoria dos EUA para o Distrito Leste de Nova York se preparam para contra-atacar. "Este escritório defenderá vigorosamente as condenações e não ficará de braços cruzados se os infratores buscarem recuperar os milhões de dólares de ganhos ilícitos", disse o porta-voz John Marzulli na quinta-feira (25).

Em um documento judicial deste mês, os promotores argumentaram que a juíza federal Pamela Chen, que presidiu os casos da Fifa, interpretou erroneamente a Suprema Corte. Os réus estrangeiros, disseram eles, tinham "vínculos e atividades substanciais nos EUA" e mostraram saber que aquilo que fizeram era um crime.

O debate jurídico ocorre em meio a uma crescente preocupação de que organizações esportivas globais operem em um mundo próprio, intocáveis pelas autoridades. A corrupção sistêmica entre os principais líderes do futebol global foi amplamente documentada, mas, até que o Departamento de Justiça construísse o caso e apresentasse acusações em 2015, nenhum governo havia arriscado enfrentá-la de forma tão ambiciosa, com acusações que abrangiam três continentes.

Uma vez pública, a investigação da Fifa se tornou um dos maiores casos de corrupção transnacional da história dos EUA: exigiu cooperação de autoridades no exterior, que ajudaram a fazer prisões e a extraditar réus para o país, e revelou décadas de suborno, acusações de contratos secretos, entregas de dinheiro, intimidação no tribunal e a confirmação oficial de que milhões de dólares influenciaram os votos para conceder as Copas do Mundo de 2018 e 2022 à Rússia e ao Qatar, respectivamente.

O caso foi uma bênção para os advogados e um aviso para o esporte internacional. Ele impulsionou o perfil dos promotores americanos, elogiados por aplicar de forma criativa a lei dos EUA sobre fraude bancária em serviços honestos, que proíbe pessoas de trair seus empregadores ao se envolverem em esquemas de suborno e propina que desviam dinheiro para seus próprios bolsos. A estratégia jurídica foi amplamente vista como uma maneira inovadora de combater o subor no comercial estrangeiro.

As acusações levaram a uma reforma na cúpula da Fifa, incluindo a destituição de seu presidente de longa data, Joseph Blatter, e transformaram algumas figuras-chave do caso em celebridades. Loretta Lynch, procuradora-geral dos EUA na época, foi apelidada de Fifa-Jägerin ("a caçadora da Fifa") pela mídia alemã.

Ex-presidente da Fifa, Sepp Blatter acena após deixar tribunal na Suíça - Fabrice Coffrini - 8.jul.22/AFP

Estava longe de ser a primeira vez que o Departamento de Justiça apresentava acusações complicadas com ângulos globais. Mas a abrangência do caso e seu foco desproporcional em outras partes do mundo levantaram questões sobre por que os promotores federais do Brooklyn escolheram investir anos de recursos na investigação. Como justificativa, eles apontaram para o uso de bancos americanos pelos réus e, de forma mais ampla, para a "afronta aos princípios internacionais" que, segundo Lynch, seus esquemas representavam.

Agora, à medida que os promotores americanos se preparam para defender seu trabalho perante um tribunal de apelações federais, a ideia de que a lei dos EUA poderia ser aplicada onde outros não puderam ou não quiseram agir está em questão. Isso abriu a porta para uma possibilidade dramática: que autoridades esportivas proeminentes e empresários que foram considerados culpados de solicitar ou aceitar subornos possam ter suas condenações anuladas e suas fortunas devolvidas.

Em entrevista na semana passada, o ex-presidente da Conmebol e da Associação Paraguaia de Futebol Juan Ángel Napout disse que foi condenado para servir de exemplo. "Por que eu? Eles precisavam de alguém, e fui eu", declarou.

Napout pagou mais de US$ 4 milhões ao governo dos EUA, que até agora repassou mais de US$ 120 milhões em dinheiro confiscado à Fifa e se comprometeu a liberar dezenas de milhões a mais. De volta a Assunção (Paraguai) desde a saída da prisão no ano passado, Napout está pedindo aos EUA que anulem sua condenação e devolvam seu dinheiro.

O dirigente paraguaio ficou preso por mais tempo do que qualquer outra pessoa implicada no caso, e seu estilo de vida luxuoso foi interrompido quando ele se tornou cozinheiro em uma prisão na Flórida. Ele disse que não havia considerado um recurso até ouvir sobre as absolvições em setembro e está procedendo apenas a pedido de sua família. "Para que meu registro fique limpo."

Nas últimas semanas, o ex-presidente da CBF José Maria Marin, que também cumpriu pena de prisão e pagou milhões em multas, e o ex-presidente da Concacaf AlfredoHawit, que se declarou culpado e colaborou com o governo americano, fizeram pedidos semelhantes.

O ex-presidente da CBF José Maria Marin, em 2017, em frente ao Tribunal Federal do Brooklyn (EUA).
O ex-presidente da CBF José Maria Marin, em 2017, em frente ao Tribunal Federal do Brooklyn (EUA). - DON EMMERT / AFP

Em suas petições, eles estão repetindo alguns dos argumentos iniciais apresentados ao serem acusados, quando os advogados se opuseram ao que chamaram de "uso excessivo e exagerado dos promotores americanos de uma lei vaga". Na época, alguns enfatizaram que, em países como o Brasil, pagar subornos em uma transação comercial privada para garantir um acordo ou contrato não seria algo incomum ou ilegal.

À medida que a batalha jurídica continua, adversários proeminentes no caso seguiram em frente. As organizações de futebol implicadas têm novos líderes. Em 2019, Lynch se juntou ao escritório de advocacia americano Paul & Weiss e se tornou uma defensora da nova Fifa. Pelo menos duas vezes nos últimos anos, ela se dirigiu diretamente à entidade elogiando o "compromisso renovado da organização com a transparência e o comportamento ético". Lynch não respondeu a um pedido de comentário da reportagem.

Recentemente, a Fifa tem sido alvo de nova atenção por contornar processos padrão, como quando concedeu efetivamente os valiosos direitos de sediar a Copa do Mundo de 2034 à Arábia Saudita sem disputa competitiva. O presidente da Fifa, Gianni Infantino, que assumiu após a saída de Blatter, explorou a possibilidade de estender os limites de seu tempo no cargo.

O resultado dos novos recursos, a serem discutidos perante o 2º Tribunal de Apelações dos EUA, em Nova York, pode ter implicações não apenas para réus condenados, como Napout, como também para aqueles que foram acusados mas permaneceram em liberdade, fora do alcance das autoridades do país. Entre eles estão o ex-vice-presidente da Fifa e ex-presidente da Concacaf Jack Warner, de Trinidad e Tobago; os executivos de mídia argentinos Hugo e Mariano Jinkis; e os ex-presidentes da CBF Marco Polo del Nero e Ricardo Teixeira.

Pelo menos US$ 200 milhões pagos pelos condenados também estão em jogo. Uma parte disso foi prometida à Fifa, considerada vítima da corrupção em sua própria casa, e destinada a causas como programas de futebol para mulheres, jovens e pessoas com deficiência. A Fifa informou que US$ 50 milhões já foram alocados para projetos.

Paul Tuchmann, ex-promotor que agora trabalha no escritório de advocacia Wiggin & Dana, chamou a decisão de absolver dois réus de "um soluço", mas disse que, independentemente do que o tribunal de apelações decida, "não se pode voltar no tempo e apagar o impacto" do caso.

Ainda assim, Tuchmann acrescentou que desfazer o trabalho do governo teria amplas consequências, dentro do esporte global e além. "Pessoas com uma certa astúcia entenderão que o sistema de justiça criminal dos EUA não vai tocá-las. Acho isso lamentável."

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