Nadadores chineses foram flagrados no antidoping antes de ganhar ouro em Tóquio-20

Caso envolvendo 23 atletas levanta suspeitas de acobertamento e questões sobre inação de órgãos reguladores

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Michael S. Schmidt Tariq Panja
Nova York, Londres e Lausanne (Suíça) | The New York Times

Vinte e três dos mais destacados nadadores chineses tiveram testes positivos para a mesma substância proibida sete meses antes dos Jogos Olímpicos de Tóquio em 2021, mas puderam escapar do escrutínio público e continuar a competir depois que dirigentes chineses os inocentaram secretamente de doping e a autoridade global encarregada da fiscalização do uso de drogas nos esportes optou por não intervir.

Vários dos atletas com resultados positivos —incluindo quase metade da equipe de natação que a China enviou para os Jogos de Tóquio— ganharam medalhas, incluindo três medalhas de ouro. Muitos ainda competem pela China e vários deles, incluindo a duas vezes medalhista de ouro Zhang Yufei, deverão disputar o pódio novamente nos Jogos Olímpicos de Verão deste ano em Paris.

Nadadora chinesa dá braçada na piscina
A chinesa Zhang Yufei conquista o ouro na final dos 200 metros borboleta feminino durante os Jogos Olímpicos de Tóquio - Doug Mills - 29.jul.21/The New York Times

A China reconheceu os testes positivos em um relatório do seu regulador antidoping, dizendo que os nadadores ingeriram a substância proibida involuntariamente e em pequenas quantidades e que nenhuma ação contra eles era necessária.

Uma análise do The New York Times, no entanto, descobriu que o episódio anteriormente não relatado dividiu drasticamente o mundo antidoping, em que o histórico da China é um ponto crítico há muito tempo.

Autoridades dos EUA e outros especialistas disseram que os nadadores deveriam ter sido suspensos ou identificados publicamente enquanto se aguardava uma investigação mais aprofundada e sugeriram que a omissão foi das autoridades esportivas chinesas, do órgão regulador internacional da natação, World Aquatics, e da Wada (Agência Mundial Antidoping, na sigla em inglês), a autoridade global que supervisiona os programas nacionais de testes de drogas.

Essas autoridades decidiram não agir apesar de uma troca de emails entre um responsável antidoping chinês e um alto funcionário da natação mundial, aparentemente indicando que uma violação pode ter ocorrido e que, pelo menos, teria de ser reconhecida publicamente.

Mesmo depois de outras autoridades antidoping nacionais e internacionais terem fornecido repetidamente ao regulador global informações que sugerem um acobertamento e doping por nadadores chineses, a agência optou por não tentar responsabilizar os atletas, afirmando "uma falta de qualquer evidência crível" para desafiar a versão chinesa dos acontecimentos. A Wada defendeu a sua decisão de não tomar medidas, considerando as críticas infundadas.

O FBI soube no ano passado dos testes positivos, a justificativa chinesa para inocentar os atletas de irregularidades e a inação da Wada, de acordo com duas pessoas familiarizadas com o assunto e um documento examinado pelo Times.

Esta reportagem se baseia em uma análise de documentos e emails confidenciais —incluindo um relatório compilado pela agência antidoping chinesa e submetido à Wada— e em entrevistas com pessoas envolvidas em esforços antidoping em todo o mundo. Algumas entrevistas foram realizadas com base no fato de as fontes não serem identificadas porque não estavam autorizadas a falar publicamente ou tinham preocupações sobre retaliações.

Especialistas em antidoping, testes de drogas e compliance entrevistados pelo Times disseram que o tratamento do caso dos nadadores chineses e a falta de divulgação dos testes positivos contrariam precedentes há muito estabelecidos destinados a garantir transparência, responsabilidade e justiça competitiva em esportes de elite.

O episódio também expõe deficiências no sistema criado para policiar o doping no esporte, com um dos países mais poderosos do mundo capaz de enviar atletas que recentemente apresentaram testes positivos para uma droga proibida para a competição esportiva de maior visibilidade do mundo, onde definiram recordes mundiais e olímpicos sem qualquer divulgação pública.

Uma investigação da agência antidoping chinesa, conhecida como Chinada, sugeriu que o incidente resultou de um suprimento de alimentos contaminados, uma conclusão que alguns especialistas consideraram implausível.

No seu relatório, os investigadores chineses descreveram quantos dos melhores nadadores do país estavam hospedados no mesmo hotel para uma competição doméstica nos últimos dias de 2020 e nos primeiros dias de 2021. Dois meses dos testes positivos para a substância proibida —um medicamento controlado para o coração que pode melhorar o desempenho—, investigadores chineses relataram ter encontrado vestígios da substância na cozinha do hotel.

O relatório não ofereceu provas de como a droga chegou lá, apesar de contar com a ajuda da polícia nacional da China, mas conclui que os nadadores o ingeriram involuntariamente em pequenas quantidades.

A Wada confirmou em um comunicado que "revisou cuidadosamente a decisão" tomada pelos chineses e optou por não agir após consultar cientistas e consultores jurídicos externos "para testar exaustivamente a teoria de contaminação apresentada pela Chinada".

"Em última análise, concluímos que não havia base concreta para contestar a alegada contaminação", disse o diretor sênior de Ciência e Medicina da Wada, Olivier Rabin, no comunicado.

Em contraste com a posição da Wada, a Agência Internacional de Testes (ITA, na sigla em inglês), um grupo com sede na Suíça que foi criado após um escândalo de doping russo para fornecer uma camada extra de supervisão independente para a competição atlética global, disse que sua própria avaliação do caso continuava em andamento.

A Chinada disse em um comunicado que determinou que seus atletas não haviam violado nenhuma lei antidoping e, portanto, não era obrigada a publicar nenhum detalhe relacionado ao caso sem o consentimento dos atletas.

Atletas chineses desfilam na cerimônia de abertura da Olimpíada de Tóquio
A equipe olímpica da China durante a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020 - Alexandra Garcia - 23.jul.21/The New York Times

A Associação Chinesa de Natação não respondeu a um fax solicitando comentários sobre os testes.

O órgão regulador da natação confirmou que os casos foram analisados por um conselho de controle de doping e submetidos à análise de especialistas independentes, sem fornecer mais detalhes. "A World Aquatics está confiante que essas AAFs foram tratadas de forma diligente e profissional e de acordo com todos os regulamentos antidoping aplicáveis, incluindo o Código Mundial Antidoping", afirmou, referindo-se a resultados analíticos adversos ("adverse analytical findings", em inglês), o termo para testes positivos.

A história de que os nadadores ingeriram a substância sem saber forneceu uma justificativa para as autoridades chinesas romperem com os protocolos antidoping normais. Normalmente, isso envolveria uma declaração pública de que os atletas em questão estavam sendo temporariamente suspensos enquanto se aguardava uma investigação mais aprofundada, especialmente se uma descoberta de contaminação alimentar ainda não tivesse sido estabelecida.

O caso ocorreu em um momento especialmente delicado. Os nadadores planejavam competir em apenas alguns meses nos Jogos Olímpicos de Verão em Tóquio, e a China, atingida pela pandemia, sediaria os Jogos de Inverno no ano seguinte.

Os Jogos Olímpicos são motivo de orgulho para o governo chinês, como forma de projetar a força e a competência do país. Nos últimos anos, a China concentrou-se em particular nos esportes —os mais importantes, como a natação, mas também os menores, como o levantamento de peso feminino— em que pode colecionar medalhas em massa.

A história dos testes positivos começou a se desenrolar um ano após a pandemia de Covid-19, um período em que as autoridades antidoping temiam que as proibições de viagens e o fechamento das fronteiras em muitos países facilitassem fraudes. Essas restrições reduziriam as oportunidades de testes em eventos internacionais e levariam a uma dependência quase total das agências nacionais antidoping.

As cerca de duas dezenas de testes positivos envolvendo nadadores chineses foram coletados em um evento de Ano-Novo realizado durante quatro dias em dezembro de 2020 e janeiro de 2021 em Shijiazhuang, uma cidade com cerca de 11 milhões de habitantes a poucas horas a sudoeste de Pequim.

Em última análise, de acordo com o relatório investigativo de 61 páginas compilado pela Chinada e revisto pelo Times, foram realizados 60 testes em 39 nadadores. Essas amostras de urina produziram 28 resultados positivos envolvendo 23 dos competidores —uma taxa de reprovação chocantemente alta. Todas as amostras deram positivo para a mesma substância, a trimetazidina, conhecida como TMZ.

O TMZ é um medicamento de prescrição médica projetado para ajudar pessoas com doenças cardíacas. Ele está incluído em uma categoria de drogas que melhoram o desempenho e que são submetidas às mais severas penalidades. Pode ajudar os atletas a aumentar o vigor e a resistência e acelerar os tempos de recuperação e é difícil de detectar porque passa rapidamente pelo corpo.

O relatório final dos chineses disse que os investigadores descobriram vestígios de TMZ em ralos de pia, recipientes de temperos e coifas na cozinha do Huayang Holiday Hotel em Shijiazhuang, onde a maioria dos nadadores e treinadores presentes na competição se hospedaram.

Há também evidências de que as autoridades antidoping chinesas sabiam, em 15 de março de 2021, dia em que comunicaram os testes positivos, que enfrentavam a possibilidade de terem de divulgar publicamente os nomes dos nadadores. Naquele dia, a principal autoridade jurídica da Chinada escreveu um email ao seu homólogo da associação mundial de natação informando que uma "análise inicial e uma investigação preliminar mostram que esses testes positivos não são normais".

Emails obtidos pelo Times mostram que, em abril de 2021, pelo menos dois dos mais altos funcionários da Wada —o executivo mais graduado da agência e o seu principal representante legal— foram informados dos testes positivos dos nadadores chineses.

Em seu relatório, apresentado em junho de 2021, os investigadores chineses descartaram suplementos contaminados ou sabotagem como razões dos testes positivos. Eles não ofereceram nenhuma explicação, entretanto, sobre como um medicamento prescrito, disponível apenas em forma de comprimido, contaminou uma cozinha inteira.

A Wada disse que "o cenário de contaminação foi ainda mais corroborado" pelas baixas concentrações do medicamento e pela flutuação dos resultados dos testes entre positivos e negativos.

Os chineses apontaram baixas concentrações de TMZ nas amostras de urina para concluir que o doping intencional era "impossível".

Essa alegação foi rejeitada por cinco especialistas independentes que discutiram o assunto com o Times. As baixas concentrações, disseram, poderiam facilmente significar que os atletas estavam no final do período de excreção da droga.

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