Descrição de chapéu sustentabilidade

'A volta à normalidade política vai além de tirar o caos da equação', diz pesquisadora

Gabriela Lotta, professora de administração pública e governo da FGV-SP, fala sobre a importância da fase de transição e aponta a necessidade de uma nova relação entre Poderes

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Maria Carolina Trevisan
São Paulo (SP)

A atual fase de transição entre governos é um período sensível que definirá as prioridades do governo Lula a partir de 2023. É o que aponta a pesquisadora Gabriela Spanghero Lotta, 41, professora de administração pública e governo da FGV-SP.

Autora de "A Democracia Equilibrista — Políticos e Burocratas no Brasil", recém-lançado pela Cia das Letras, em coautoria com o advogado Pedro Abramovay, ela fala sobre reconstrução do país, repactuação entre Poderes e discute a importância do controle e da participação social para a democracia.

Qual é a importância do período de transição entre governos? É uma etapa sempre importante. Mais ainda mais quando há mudanças bruscas de governo. O governo que entra precisa entender o terreno onde está pisando, como a máquina está operando, quais foram as ações feitas e as que deixaram de ser feitas, onde e em que foram investidos os recursos.

Isso serve para que o governo eleito assuma no primeiro dia com propostas mais factíveis de serem implementadas. Serve para conhecer como está a máquina e preparar a entrada.

O que acontece se a transição não for bem pactuada? Pode gerar quebras muito abruptas, uma não continuidade que leva à paralisação de governo. Se o governo entra sem saber o que tem comprometido, acumulado, organizado, pode ocorrer uma quebra nas atividades rotineiras.

A transição serve para evitar que a troca política cause muitas mudanças na operação cotidiana do governo, o que atinge o cidadão diretamente.

Mulher branca, cabelos castanhos, curtos, blusa estampada e fundo branco
Gabriela Lotta, cientista política e professora de Administração Pública e Governo da FGV - Divulgação

A incompatibilidade de linhas ideológicas entre governos pode atrapalhar a transição? O governo que sai nem sempre gosta de deixar seu legado para o governo que entra. Podem ocorrer casos de apagão das informações, o que já aconteceu em outros países.

Essas informações perdidas são importantes não só para preservar a memória institucional mas também para que a sociedade tenha transparência e noção do que foi feito.

Se de repente tudo some e ninguém sabe o que estava acontecendo, isso vai gerar várias consequências ruins. Hoje a gente tem uma lei para garantir como a transição deve ser feita. Ela resguarda um pouco mais o governo que vai entrar de atitudes de apagamento que o governo atual pode ter.

A transição é também o momento de traçar planos? Sim, mas é mais a hora de obter um diagnóstico do que de planejar. Por isso que a equipe de transição não é necessariamente a que vai ficar no governo. São nomes de peso que funcionam como um balão de ensaio para fazer esse diagnóstico rapidamente e a partir disso planejar.

São ajustes, conversas, mapeamento de quem são os oponentes e de quem são os apoiadores, e uma tentativa de entender como a máquina está operando. São dois meses muito sensíveis, ainda mais quando o governo que sai não tinha muita transparência.

Qual a consequência da falta de transparência para a reconstrução do país? As três áreas mais centrais na atual reconstrução são a social, a ambiental e a de direitos humanos, que foram muito destruídas pelo governo atual. A reconstrução não demandará tanto trabalho como foi para construir pela primeira vez. Já existem políticas públicas, conhecimento e expertise acumulados.

Porém, não adianta reconstruir como se estivéssemos nos anos 2000. Os tempos são outros, as discussões sobre mudança climática ou sobre racismo, por exemplo, hoje, são diferentes. Reconstruir não é suficiente. É preciso adaptar a reconstrução.

O PT precisa olhar para trás, perceber o que não deu certo e ter um impulso de aprendizado, o que não é simples. Os legados foram destruídos com muita facilidade e isso mostra que aqueles modelos organizacionais não são sustentáveis.

Seria o caso de implementar políticas transversais em todos os ministérios focadas nessas áreas? É preciso mais que isso. Por exemplo, como uma Secretaria de Mulheres pode mandar em outros ministérios se o orçamento está nos outros ministérios e não na secretaria? Precisamos propor novos arranjos.

A agenda racial tem que ser prioridade no Ministério da Saúde, senão a Secretaria de Igualdade Racial ficará brigando, cobrando metas, sem ter recursos para garantir a política de saúde integral da população negra, porque é a Saúde quem implementa.

O Brasil sai do governo Bolsonaro com a democracia abalada. Como retomar um equilíbrio na democracia? A gente precisa voltar para uma normalidade, em vários sentidos. O método de governo do Bolsonaro, baseado no caos, como definiu o filósofo e cientista social Marcos Nobre, criou desequilíbrios o tempo inteiro.

Foi um governo que atacou as outras instituições, tentou fazer prevalecer o seu poder sobre os outros, não tratou com o Legislativo, mas, quando precisou, criou o orçamento secreto, e com isso deu mais poder ao Legislativo do que ele deveria ter. Isso significa desequilíbrio. É assim que Bolsonaro navegou seu governo.

O que seria uma normalidade política? Uma volta à normalidade política quer dizer tirar o caos da equação para que a gente tenha um pouco mais de equilíbrio. Isso, por si só, já vai trazer um pouco mais de normalidade.

Mas a gente precisa ter um trabalho institucional importante tanto do presidente Lula, de acalmar os ânimos e reconstruir a relação com os outros Poderes, quanto dos outros Poderes se colocarem novamente em seus lugares. Precisamos instituir sistemas de responsividade à sociedade.

Não dá para ter um sistema de pesos e contrapesos funcionando bem na democracia se você tem instituições que não são responsivas à sociedade. E isso não é uma questão de voltar à normalidade pós-Bolsonaro. É uma questão de repensar as nossas instituições.

Do ponto de vista da desburocratização do Estado, sua área de pesquisa e que pode entrar nos planos do governo Lula, como melhorar a qualidade do serviço público oferecido aos cidadãos? Quando a burocracia não funciona direito existe uma disfunção burocrática. Significa que há excesso de papelada, de regras, de procedimentos ou que ela tem exceções. Isso gera um problema de serviço.

A disfunção faz com que o foco do trabalho seja o próprio serviço e não o resultado dele. Gera uma preocupação consigo mesmo e não para fora. Desburocratizar é corrigir essas disfunções tendo como foco a entrega para o cidadão, para garantir que o serviço seja bem prestado.

Seria um governo mais digital e transparente? Sim. Seria também repensar o funcionamento da administração pública para dentro. Há uma parte visível para o cidadão, como o acesso ao portal do governo, à aplicativos, ao SUS para obter o certificado de vacinação, por exemplo.

Mas para chegar até aí é necessário um trabalho de bastidor, de digitalização para que o serviço apareça para o cidadão. Por isso, precisamos ter dados abertos, transparência, cruzamento de informação, para refinar a qualidade desses serviços.

Isso tudo faz parte de um movimento, que também é internacional, que coloca o cidadão no centro dos serviços. É repensar a maneira como o Estado funciona, tanto no sentido da digitalização e do governo digital, quanto no de estabelecer critérios de qualidade.

Esta é a quinta de uma série de publicações da Folha Social+ em parceria com a Agenda Pública.

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