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Piora da fome leva ONG em Heliópolis a criar restaurante para alunos de música

Caso de aluno que dormia para não sentir a barriga vazia mobilizou Instituto Baccarelli, que agora oferece três refeições diárias

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São Paulo

A pintura na parede de um restaurante em Heliópolis mostra casas de uma comunidade entremeadas por garfos, facas e notas musicais. A mistura de referências, à primeira vista desconexa, é, na verdade, muito representativa do que acontece ali.

Com mesas, cadeiras e sofás coloridos, o refeitório fica na sede do Instituto Baccarelli, que há 27 anos oferece educação musical a crianças e adolescentes da maior favela de São Paulo.

Inaugurado em agosto deste ano, o Restaurante Baccarelli representa uma mudança de paradigma na organização. "A ideia é juntar a alimentação da alma, que é o que a música traz, com a alimentação do corpo", sintetiza Patrícia Costa, chef educadora da Gastronomia Periférica, negócio social responsável pela operação do local.

As alunas do Instituto Baccarelli Gabriela de Noaves, 6, e Emanuelly Rodrigues, 5, no novo restaurante na sede da organização, em Heliópolis
As alunas do Instituto Baccarelli Gabriela de Noaves, 6, e Emanuelly Rodrigues, 5, no novo restaurante na sede da organização, em Heliópolis - Divulgação/Instituto Baccarelli

O projeto é resultado de um esforço de quase dois anos, motivado pela escalada recente da insegurança alimentar na população brasileira. Foi preciso reativar, reformar e equipar uma cozinha e um refeitório que haviam sido construídos na época da inauguração da sede, em 2009, mas que estavam desativados havia 13 anos.

"Em 2010, veio a crise financeira e a gente decidiu cortar a comida porque entendemos que nossa principal função era a educação", afirma o maestro Edilson Venturelli, diretor executivo do instituto.

Dez anos depois, a pandemia reprogramou as prioridades. O ponto de virada aconteceu quando uma professora se deparou com uma situação limite ao tentar marcar uma aula online com um aluno.

"Era um menino de uns 11 anos que estava sozinho com dois irmãos. A mãe tinha viajado para o interior e quando o governo decretou lockdown, não conseguiu voltar. As três crianças estavam, literalmente, sem nada para comer", conta Venturelli.

Sua estratégia, disse o estudante, era dormir o dia todo para não sentir fome. Diante da gravidade da situação dessa e de outras famílias, o Baccarelli passou a arrecadar recursos para levar comida à casa de seus alunos —mais de 1.000 toneladas de alimentos e R$ 1 milhão em vales alimentação foram entregues.

Em 2022, com a queda geral das doações e as famílias ainda empobrecidas, o instituto decidiu criar um programa de segurança alimentar mais perene e reativar o restaurante sob novos moldes.

"Começamos a repensar para que nós existíamos. Para que o maestro Baccarelli fundou a instituição? Para ensinar música? Não, foi para ajudar pessoas da comunidade. A música foi a ferramenta que ele encontrou para oferecer essa ajuda. E hoje o que eles estão precisando é da comida", afirma o diretor.

Lentilha e repolho roxo

Além de cuidar da operação do restaurante, a Gastronomia Periférica oferece capacitação profissional para mães de alunos do instituto —cinco delas foram contratadas para trabalhar na cozinha do Baccarelli.

O cardápio prioriza alimentos frescos, com fruta de sobremesa e suco natural para beber. No dia da visita da reportagem, o almoço tinha arroz, lentilha, frango recheado, batata na manteiga e duas opções de salada.

As crianças mais nov costumam estranhar alguns ingredientes. Na primeira semana, o estrogonofe fez sucesso, mas a salada de repolho roxo foi recusada pela maioria.

"Procuro sempre apresentar verduras, frutas e outros alimentos que eles não conheciam. Por exemplo, a lentilha. Muitos resistem, mas aos poucos a gente está trabalhando a aceitação com eles. Está sendo muito legal", diz a nutricionista Mariane de Andrade.

Pós-graduada em nutrição pediátrica e escolar, ela nasceu e foi criada em Heliópolis e se diz especialmente feliz em planejar refeições de qualidade para crianças da região.

Desmaios

Um levantamento feito entre 2021 e 2022 mostrou que um terço das famílias atendidas pelo instituto estava em situação de insegurança alimentar grave, ou seja, deixava de fazer ao menos uma grande refeição por dia. Cerca de 200 se declararam sem nenhuma renda.

Segundo Maurício Cruz, diretor de desenvolvimento institucional do instituto, o restaurante foi criado como uma ação mais permanente do que doações de cestas básicas. "Por estarmos na ponta, a gente entra em contato com a realidade da insegurança alimentar todos os dias. E, por mais que haja uma retomada socioeconômica, sabemos que a melhora será progressiva, vai levar anos."

Até então, era oferecido apenas um lanche pela manhã por um motivo emergencial: não era incomum que alunos do primeiro horário desmaiassem por estarem de barriga vazia.

"O que acontece em uma aula de música? Você canta, respira forte, hiperventila. Aí a criança desmaiava. Então a gente reagiu, mas o que podíamos oferecer era uma bolacha com achocolatado, estava longe do ideal. Era só para o aluno ter energia para ficar de pé", diz Cruz.

Ele considera a união entre a Gastronomia Periférica e o Baccarelli um "casamento perfeito". "A gente utiliza a música como ferramenta de inclusão e eles, a gastronomia", explica.

Ensaio da Orquestra Sinfônica Heliopolis, do Instituto Baccarelli, em 2011, quando foi regida pelo célebre maestro indiano Zubin Mehta - Danilo Verpa - 16.ago.11/Folhapress

O instituto tem hoje 1.420 alunos, com idade a partir de dois anos, que frequentam a sede ao menos duas vezes por semana e têm direito a duas refeições diárias lá.

Uma das metas da ONG é distribuir marmitas para as famílias dos alunos levarem para casa. "Se a criança não tem o que comer, talvez o irmãozinho, o pai, a mãe também não tenham. Se eu não atender as famílias, resolvo só parcialmente o problema", diz Venturelli.

O diretor diz ter tomado a decisão de nunca abrir mão de um programa de segurança alimentar no instituto. "A alimentação é complementar à música, ou talvez seja o contrário e a educação seja complementar à alimentação. Porque sem alimentação você não aprende. Sem alimentação não há dignidade."

A causa 'Fome de quê? Soluções que inspiram' conta com o apoio da VR e da Rede Folha de Empreendedores Socioambientais.

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