Descrição de chapéu Todo mundo lê junto

Marielle Franco era 'espalhafatosa, distraída, carinhosa e vivia atrasada', lembram Monica Benicio e Marcelo Freixo

Viúva e amigo da vereadora ajudam a contar quem era Marielle além da imagem de violência que marcou seu nome para sempre

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Placa em manifestação de homenagem à vereadora Marielle Franco, com a frase que virou grito de guerra  15.mar.2018-Bruna Prado/UOL

São Paulo

A morte é um único instante na vida de alguém. Antes dele, vieram outros tantos, infinitos. No caso de Marielle Franco, foram 38 anos em que couberam uma gargalhada contagiante, muita alegria e um jeito particular de falar alto enquanto se gesticula com os braços. Couberam também uma filha, uma companheira, uma irmã e incontáveis amigos.

"Ela era espalhafatosa, grande, devia ter 1,81 m de altura", chuta Marcelo Freixo, presidente da Embratur e uma das pessoas mais próximas de Marielle desde 2005. "Não, ela tinha 1,75 m!", corrige Monica Benicio, vereadora no Rio e viúva de Marielle.

Vereadora Marielle Franco - Reprodução/Instagram/marielle

Talvez o cabelo crespo preso para cima passasse a ideia de imensidão —ou podia ser culpa das frequentes sandálias de saltinho quadrado, que acrescentavam cinco centímetros à figura de Marielle. "Ela era muito maior do que todos poderiam imaginar", resume Freixo, e aqui ele não fala de tamanho medido na régua normal das coisas.

Gigante, na visão de quem a conheceu de perto, Marielle morreu em 2018, no dia 14 de março. Foi assassinada quando voltava de uma palestra que deu no centro do Rio de Janeiro, e corria para casa de carro para jantar com a mulher e assistir ao jogo do Flamengo, seu time do coração.

"A Mari é uma mulher que se torna conhecida através da sua morte, pela violência que sofreu. Mas, ao mesmo tempo, ela vira a imagem de algo muito forte, e que é associado à vida e à força da mulher negra", avalia o amigo Freixo.

O instante em que Marielle deixa de existir, cinco anos atrás, a divulga para o mundo todo. E em todo mês de março, Monica dá entrevistas para relembrar a mulher que amava. "Ainda é muito complicado, mas faço isso entendendo esse lugar da preservação da memória dela", diz.

Ainda não se sabe quem mandou matar Marielle, nem por que mandaram matá-la, e desde então Monica faz uma contagem pública dos dias sem explicação. "Essa falta de resposta também não dá a possibilidade de fazer o luto pleno, de encerrar uma etapa e deixar a gente lembrar só das coisas importantes e engraçadas."

Por exemplo: Marielle vivia chegando atrasada aos lugares. Ela e Monica se conheceram em uma viagem de Carnaval para Jaconé, um município do Rio. Algumas amigas em comum resolveram convidá-las, e a van sairia à noite para pegar a estrada.

"Ela atrasou quase duas horas, e eu, que sou superpontual, estava muito irritada com aquilo. Lembro quando ela veio se apresentar pra mim. Eu tava sentada na mala, ela parou na minha frente, me deu boa noite, e quando levantei a cabeça vi aquela luz própria, um sorrisão", conta Monica.

"Eu não entendi o nome dela, entendi 'Mariene', ela me corrigiu dizendo 'Marielle, com dois Ls', e eu respondi 'Prazer, Marielle com dois Ls atrasada", lembra, rindo. Monica diz que ali já surgiu uma "empatia instantânea", e ela, Marielle e sua filha, Luyara, mudaram os lugares na van para se sentarem juntas no trajeto.

Em Jaconé, Marielle e Monica eram as únicas do grupo a acordar cedo. Aproveitavam para caminhar na praia e falar da infância que passaram no mesmo lugar, o Complexo da Maré, no Rio.

"A Mari é filha de nordestinos que vieram para o Rio de Janeiro e foram morar na Maré, seu Antonio e dona Marinete. Eles tiveram duas filhas, Mari e Anielle. As duas gostavam muito de funk, mas a Marinete não deixava elas irem para o baile de jeito nenhum, dizia que era lugar de bandido", conta Freixo.

"Só que a Marielle não só ia, como virou dançarina da Furacão 2000 [produtora de shows de funk carioca]", brinca.

Freixo conheceu Marielle por causa de Anielle, que foi sua aluna no colégio e hoje é ministra da Igualdade Racial. Em 2005, durante um debate na famosa praça da Cinelândia, no Rio, depois da exibição de um filme, Anielle apresentou a irmã, que estudava ciências sociais e se dizia fã do trabalho de Freixo na luta pelos direitos humanos.

No ano seguinte, os dois já estavam trabalhando juntos. "Pode parecer estranho, mas ela era uma menina muito tímida. Veio muito de baixo, conquistou tudo e era muito carregada de incertezas. Tinha muita gana, fibra, mas muito medo das coisas", fala o amigo.

Marcelo Freixo e a vereadora Marielle Franco, assassinada no Rio de Janeiro em 2018 - Arquivo Pessoal/Marcelo Freixo

"O trabalho dela vai dando certo, ela vai vendo aquilo funcionar e aquilo vai mudando ela. Ela vai ocupando um espaço cada vez mais de liderança, e de 2012 a 2016 a Marielle dá um salto monumental. Ela começa a usar umas roupas mais coloridas, pinta o cabelo, ela vai ganhando confiança, vai trabalhando com meninas, com as favelas, com a polícia."

Um dia, Marielle vai à sala de Freixo e avisa que vai se candidatar a vereadora. "Ela ria e dizia que estava morrendo de medo e não sabia se estava preparada. Eu disse que era óbvio que ela estava preparada, que ela tinha crescido e virado uma liderança, e o olho dela encheu de água."

Foi eleita com 46 mil votos, e começou ali, na visão de Freixo, a mudar o Rio de Janeiro. "Ela era uma referência para todas as mulheres não pelos belos discursos que fazia, mas pela capacidade de agregar. Em torno da Marielle sempre tinha gente", define Freixo.

Em seu último momento presente, Marielle reuniu uma multidão. Era tanta gente no velório dela, na mesma Cinelândia em que ele a conhecera 13 anos antes, que Freixo achou que algum outro evento acontecia ao mesmo tempo.

"Tomei um susto. Era uma quinta de manhã e 80% daquelas pessoas não conheciam Marielle, e ficaram conhecendo pela notícia. Conheceram algo que elas queriam ter e não tinham mais. E a imagem que a gente precisa construir da Marielle não pode ser mais dessa morte", opina.

"Ela teve um monte de namorados e namoradas, por exemplo, o que é bom na vida. E teve um momento em que ela tinha acabado um casamento e me procurou pra falar que estava apaixonada pela Monica, que ia viver com ela e enfrentar a mãe, que não aceitava de jeito nenhum. Ela me pediu pra tentar conversar com Marinete, eu aceitei. E Mari estava muito feliz", lembra.

"A nossa relação foi muito difícil, tínhamos medo do preconceito das nossas famílias, de sofrer lesbofobia [negatividade em relação às mulheres lésbicas] na favela. A mãe dela nunca aceitou, e essa era uma parte muito difícil", conta Monica.

Depois de um tempo, ela, Marielle, Luyara e o cachorro Madox foram morar juntos. "Ele era muito comportado, mas a única arte que fazia era revirar a lata de lixo. E a Mari corria pra recolher tudo antes que eu visse, pra eu não brigar com ele", brinca. Madox também morreu em 2018.

Uma das coisas de que Monica mais sente falta na rotina com Marielle é das manhãs, quando elas arrumavam a cama juntas, conversando. Depois, Mari escolhia o turbante que usaria no dia, entrava no banho, e Monica separava uma roupa que combinasse com o tecido, pondo tudo em cima da colcha.

"Ela era distraída, um dia regou uma planta de plástico achando que era de verdade. Tinha uma Marielle que aparecia para o público, que era muito forte, combativa, mas em casa ela se permitia esse lugar do cuidado, ser frágil, fazia 'vozinha' pras coisas, tinha muito cuidado com meus desejos. Era uma parceria muito bonita."

Monica Benício e Marielle Franco se beijam
Monica Benicio e Marielle Franco - Acervo pessoal

O senso de companheirismo de Marielle era uma das coisas que mais encantavam Monica. Para ela, conta a viúva, os amigos nunca tinham problemas sozinhos, porque Mari sempre se dispunha a dar um jeito e ajudar.

"Ela se incluía intimamente nos processos, por mais dolorosos que pudessem ser. Ela tinha muito cuidado de ser parceira, de elogiar uma mudança de decoração que eu fizesse. Ela tinha medo de barata, mas, porque eu tinha mais medo ainda, ela enfrentava por mim. Até o último dia sempre fomos um casal muito apaixonado."

TODO MUNDO LÊ JUNTO

Texto com este selo é indicado para ser lido por responsáveis e educadores com a criança

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