São Paulo, quinta-feira, 4 de novembro de 1999




É difícil a destruição
de muros invisíveis

Associated Press - 12.nov.89
Policial alemão oriental observa o lado ocidental por uma fresta do que restou do Muro de Berlim


PETER BURKE

especial para a Folha

No verão de 1961, estive pela primeira vez em Berlim, mais exatamente nas duas Berlins, então separadas por uma fronteira, mas ainda não pelo muro famoso.
Eu estava em Berlim Ocidental como membro de um grupo do St. Antony’s College de Oxford em visita à Universidade Livre.
É claro que todos nós queríamos dar uma olhada na vida do outro lado da “cortina de ferro”, que nunca antes havíamos ultrapassado. Foi uma experiência singular. Caminhando no centro de Berlim Oriental, era difícil fugir à impressão de que a Segunda Guerra Mundial terminara havia pouco. Alguns edifícios ainda estavam em ruínas, e o mato crescia na escadaria da Ópera.
Entrando num café, comecei a me sentir como um personagem das histórias de Kafka quando a garçonete pediu meu passaporte. Ao descobrir que eu desembarcara no aeroporto ocidental (Tempelhof, naqueles dias), ela explicou educadamente que não podia me servir. O problema era que o estoque do café estava baixo e não poderia ser desperdiçado com turistas ocidentais.
Naqueles tempos, muita gente de Berlim Oriental (especialmente os mais jovens) vinha pedir asilo no país estrangeiro que começava na metade ocidental de sua própria cidade.
Graças a um membro do grupo do St. Antony’s que conhecia uns jornalistas alemães, pudemos assistir a algumas entrevistas oficiais com recém-chegados a Berlim Ocidental.
Ainda me lembro do rapaz que se dizia refugiado político porque fora punido por sintonizar seu rádio numa estação de música ocidental durante seu turno de trabalho numa fábrica. Seu pedido de asilo político não foi aceito.
Diante da enxurrada de refugiados, a decisão de construir o muro não foi uma surpresa, por mais que o regime alemão oriental dissesse que tentava apenas proteger seu povo do imperialismo e do fascismo.
Voltei a Berlim 27 anos mais tarde, em outubro de 1989.
O processo de passagem pelo Checkpoint Charlie e de câmbio de divisas a uma taxa oficial não mudara muito, mas o centro de Berlim Oriental estava limpo, e já não havia mato na escadaria da Ópera.
A impressão predominante era de elegância, contanto que o visitante seguisse pelas ruas e praças principais, sem olhar para as ruas laterais aos pedaços.
Agora os estrangeiros já podiam freqüentar os cafés. Aliás, de ambos os lados do muro encontravam-se alguns dos melhores remanescentes dos cafés alemães no tradicional estilo burguês de 1900.
A cultura clássica alemã parecia ser levada mais a sério no lado oriental do que no ocidental, com obras de Goethe em destaque nas livrarias e Beethoven igualmente em destaque no programas de concerto. Na Ópera, era fácil distinguir os cidadãos orientais, vestido com mais formalidade em seus ternos pretos com gravata.
Era como se o tempo passasse mais devagar sob o socialismo do que sob o capitalismo.
Um dos poucos indícios do lugar em que estávamos era o serviço nos restaurantes e nos cafés, ou melhor, a falta de serviço. O problema todo estava em atrair a atenção do garçom ou da garçonete. A solução consistia em puxar uma cadeira de uma mesa para outra, pois então um garçom aparecia instantaneamente para dizer ao cliente que a devolvesse ao lugar original.
A Alemanha Oriental era uma sociedade disciplinada. Naquele momento, entretanto, só restavam ao regime uns poucos dias de vida, mais precisamente até 9 de novembro de 1989, primeiro dia em que os cidadãos orientais puderam visitar o lado ocidental sem permissão especial.
Em poucas horas, havia gente dançando sobre o muro.
Alguns dias mais tarde, era fácil ver alemães orientais vagando pelas ruas de Berlim Ocidental reconhecíveis não apenas por seus sapatos baratos, mas também pelo ar perplexo com que fitavam as lanchonetes McDonald’s e o supermercado palaciano conhecido como KaDeWe (o “Mercado do Ocidente”). Meses mais tarde, o ânimo festivo disseminara-se mesmo entre os soldados russos ainda estacionados em Potsdam, que começaram a conversar com civis e tomar sorvete durante o turno de sentinela.
De 9 de novembro em diante, as pessoas de ambos os lados começaram a talhar o muro com picaretas para levar fragmentos como recordação. Em dezembro, quando o Portão de Brandemburgo foi aberto, havia pedaços do Muro de Berlim à venda nas ruas de Nova York. Havia tantos pedaços à venda em diferentes cidades que, se reunidos, poderiam rivalizar com a Grande Muralha da China.
Quando o muro foi fisicamente demolido, a euforia coletiva e a atmosfera festiva dos primeiros dias já se evaporaram havia tempo. Do lado ocidental, havia queixas sobre o número de Trabants (o carro mais comum na Alemanha Oriental) estacionados nas ruas ou sobre a falta de produtos nos supermercados freqüentados pelos orientais, os “ossis”.
Também havia desilusão no lado oriental. Em seguida à reunificação de 1990, os aluguéis e o desemprego começaram a subir em Berlim Oriental.
Por volta do verão daquele ano, podia-se ver ex-cidadãos orientais carregando cartazes com os dizeres “WIR WOLLEN ÜNSERE MAUER WIEDER” (“Queremos nosso muro de volta”).
O que acontecera em 1990 não fora um casamento entre iguais, como haviam esperado alguns otimistas, mas simplesmente a velha história do peixão que engole o peixinho.
Dez anos depois, talvez ainda seja muito cedo para estimar as consequências de longo prazo da queda do muro. A reconstrução de Berlim, em especial a reconstrução da área mais ou menos vazia de ambos os lados do muro, é um bom símbolo da nova situação política e social.
Há muita atividade frenética, mas é quase impossível discernir as formas da futura cidade em meio à poeira e aos andaimes.
Em 1989, a destruição do muro foi vista por muitos, dentro e fora da Alemanha, como um acontecimento heróico semelhante à tomada da Bastilha em Paris, 200 anos antes um sinal do sucesso da rebelião popular contra um antigo regime opressor. Em 1999, entretanto, no momento em que o governo alemão transfere-se de Bonn para Berlim, as coisas têm um aspecto distinto.
A meu ver, o problema está em saber se e em qual medida as duas culturas estão se unificando. Pois nos 45 anos entre 1945 e 1989 as metades oriental e ocidental tornaram-se duas Alemanhas, duas culturas, individualista e capitalista de um lado, coletivista e socialista do outro.
Para usar a linguagem da Revolução Francesa, a liberté estava de um lado, a égalité e a fraternité, do outro. Tais diferenças não podem ser apagadas num dia ou numa década, a despeito da liberdade de movimento a leste e a oeste.
Os padrões de voto, entre tantas outras coisas, ainda divergem nas porções ocidental e oriental da Alemanha reunificada.
Em 1989, muita gente julgava testemunhar o triunfo dos acontecimentos sobre as estruturas, a demolição de um regime político; não perceberam ou não avaliaram a persistência de atitudes, valores e mentalidades diferentes. Muros invisíveis são muito mais difíceis de destruir.

Tradução de Samuel Titan Jr.

QUEM É PETER BURKE
Nascido em Londres, em 1937, Peter Burke é professor de história cultural na Universidade de Cambridge (Inglaterra) e docente convidado do Emmanuel College, também em Cambridge.
O historiador esteve no Brasil em 94 e 95, quando desenvolveu um projeto de pesquisa no Instituto de Estudos Avançados da USP e também atuou como professor convidado.
Autor de obras como “A Arte da Conversação” (Unesp) e “A Fabricação do Rei” (Jorge Zahar Editor), Burke acredita que a história trabalha no limite entre os fatos concretos e a ficção.
Seu mais recente livro publicado no Brasil é “O Renascimento Italiano” (Nova Alexandria), um estudo sobre a vida de artistas como Da Vinci e Michelangelo e a formação da “elite cultural” italiana nos séculos 15 e 16.
Peter Burke escreve mensalmente no caderno Mais!, na seção “Autores”.


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