São Paulo, quinta-feira, 4 de novembro de 1999




Alemães desfilam tolerância e culpa

País abriga 21% dos refugiados da Europa e já gastou US$ 56 milhões com indenização a vítimas de guerra

na Alemanha

A Alemanha se vê com os olhos da culpa, mas também com os da tolerância. Apoio a refugiados, indenizações de guerra e acolhimento de estrangeiros são o tripé da estratégia alemã para falar do país como um lugar que reconhece os crimes do Holocausto.
A favor da Alemanha “tolerante”, os números: o país concentra 1,3 milhão de refugiados ou requerentes de asilo, 21% do total da Europa, informa o relatório de 1998 do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados.
Em território alemão vivem hoje 949 mil pessoas já reconhecidas como refugiadas e outras 370 mil à espera de asilo. Na França, tradicional defensora dos direitos humanos e das liberdades individuais, vivem 140 mil refugiados. Em 98, a Alemanha recebeu 98 mil pedidos de asilo, a maioria de moradores da Iugoslávia.
Para o ministro do Interior, Otto Schily, muitas pessoas vêm usando o recurso de pedir asilo mesmo que não estejam sendo vítimas de perseguições, apenas com o objetivo de entrar no país.
O governo vai agir de duas formas: intensificando os programas de auxílio a países pobres, em desenvolvimento ou com problemas internos; e reforçando o policiamento em suas fronteiras.

50 anos de culpa
Pagar compensações de guerra tem sido outra forma de tentar reparar os danos da Segunda Guerra Mundial. Até este ano, foram pagos US$ 56 milhões em reparações, sendo US$ 43 milhões a perseguidos por motivos de raça ou religião ou a suas famílias.
Oficialmente, o discurso da culpa é este: “Os alemães estão conscientes das crueldades do regime nazista, e os assassinatos em massa de judeus não podem ser esquecidos. Sentimos vergonha e assumimos a responsabilidade”, disse à Folha o advogado Feeke Meents, do Bundespresseamt, o Departamento de Imprensa e Informação do governo alemão.
“Os alemães tiram lições do passado. Temos um direito de acesso liberal para pessoas perseguidas porque sabemos quão terrível é a situação deles. Por causa dessa relação ativa com o passado, os alemães não andam por aí com o sentimento de culpa.”
Para ensinar aos jovens alemães o passado, são comuns na Alemanha placas e monumentos com o “mea culpa” sobre a mortandade dos judeus. Em Weimar, o antigo campo de concentração de Buchenwald recebe hoje turmas de estudantes alemães e até de judeus que querem conhecer o passado de seus avós.
O mesmo campo recebe grupos de recrutas do Exército alemão, um dos pólos de concentração das novas hordas de neonazistas.
Em Buchenwald, o contraste: enquanto a Alemanha mostra ao mundo o que fez, um grupo de estudantes judeus é xingado pelos jovens alemães. “Tenho pena deles”, diz Reut Amihud, 15, estudante israelita que visita o local.
Para o germanista Paulo César de Souza, o sentimento de culpa do povo alemão é inevitável, porque passou-se pouco tempo desde o Holocausto. “Cinquenta anos não são nada na história. Mesmo pessoas jovens sentem isso. Quando elas descobrem o que foi o Holocausto, sofrem um choque”, diz Souza, tradutor de Freud, Nietzsche e Brecht.
Souza lembra que o anti-semitismo não foi um fenômeno alemão. “Penso nisso como parte de um conflito de tensões milenares dentro da cultura cristã ocidental, num contexto do qual fazem parte as frustrações dos alemães na Primeira Guerra, a depressão e a ruptura do tecido social.”
Para o filósofo Roberto Romano, professor de filosofia política na Unicamp, o sentimento de culpa não é tão universal entre os alemães. Mais comum, diz ele, é o mal-estar que o assunto provoca.
“Percebo que alguns alemães, especialmente os mais jovens, estão cansados dessa culpa, porque dizem que não foram eles que fizeram o Holocausto. É complicado atribuir culpa a multidões.”
Romano diz também que a tolerância ainda esbarra em peculiaridades regionais e problemas como o neonazismo.
(FERNANDA DA ESCÓSSIA)
(SÍLVIA CORRÊA)

As jornalistas Fernanda da Escóssia e Sílvia Corrêa viajaram a convite do Departamento de Imprensa e Informação do governo alemão


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