São Paulo, quinta-feira, 4 de novembro de 1999




Alemanha conduz União
Européia com cautela


País abandona expansionismo e militarismo; adota precaução na economia e na política para evitar que
sócios europeus não voltem a olhá-lo com desconfiança

CLÓVIS ROSSI
do Conselho Editorial

Kaiser. Fuhrer. Reich. Palavras fortes, bem alemãs, para designar imperador, grande condutor, império. Tão alemãs que marcaram a história do país e do mundo na primeira metade do século.
Tão fortes que voltaram a assombrar mentes e corações na Europa e nos EUA há dez anos, quando o Muro de Berlim ruiu, e a Alemanha pôde enfim se reunificar e ficar livre das tropas estrangeiras que a ocuparam após o final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Temia-se, então, que o instinto expansionista e o militarismo tradicionais reemergissem.
Hoje, dez anos depois, o ministro alemão de Relações Exteriores, o “verde” Joschka Fischer, usa palavras prosaicas, imensamente distantes de algo parecido a um “Reich”, para descrever o papel de seu país, terceira potência econômica do planeta.
Diz que a Alemanha é um líder “que conduz do assento traseiro”.
Palavras prosaicas, mas que são encaradas como absolutamente corretas por todos os acadêmicos que estudam a Alemanha e com os quais a Folha conversou.
Mesmo por aqueles como Belinda Cooper, pesquisadora sênior do World Policy Institute, que é filha de vítimas do Holocausto (a matança de judeus promovida pelo regime nazista alemão) e teria, portanto, razões para se assombrar com um eventual ressurgimento das antigas tendências germânicas.
“Acho que é muito claro que a Alemanha não é o tipo de ameaça para o mundo que foi antigamente”, diz ela. Não é e não será, acrescenta. Nem por isso essa nova e prosaica Alemanha é uma potência de segunda classe.

Conglomerado
Ocupa, como diz Fischer, o assento traseiro, mas de um veículo poderoso, a UE (União Européia), o conglomerado de 15 países que superou todos os traumas de muitas guerras para se unificar.
“A Alemanha desempenha um papel político muito ativo, mas como decorrência de sua participação em instituições como a União Européia, a Otan e o G-7 (o clubão dos sete países mais ricos do mundo)”, diz Helmut Sonnenfeldt, especialista, entre outras áreas, nas relações Leste-Oeste da Brookings Institution.
“Escolheu agir assim, no contexto da UE, e não como líder isolado”, reforça Jackson Janes, diretor-executivo do Instituto Americano para Estudos da Alemanha Contemporânea.
Por quê escolheu? Arrisca Belinda Cooper: “Desde a guerra, os alemães frequentemente pareciam desconfiar deles próprios. Davam a impressão de temer que, deixada sem controle, a Alemanha poderia de fato recair em suas tendências anteriores (expansionistas e militaristas). Por isso, preferiram integrar o país tanto quanto possível em estruturas mais amplas que poderiam mantê-lo sob controle”.
O retraimento alemão foi tão profundo e prolongado que, mesmo em 1995 (50 anos exatos após o fim da guerra), o país se recusou a permitir que um técnico seu fizesse parte da tripulação de um avião da Otan, a aliança militar ocidental, em missões de vigilância na Bósnia.
Ou, como lembra Sonnenfeldt, “não fez como a Itália (outro dos países derrotados na guerra), que organizou uma força multilateral para intervir no caos albanês no ano de 1997”.
É verdade que, hoje, a Alemanha tem 2.760 soldados estacionados na Bósnia e participou da guerra em Kosovo, no início do ano, na primeira vez em que tropas alemãs atuaram fora de seu território após a Segunda Guerra.
Poderiam sentir, metaforicamente, o gosto de sangue e, em consequência, sofrer uma recaída expansionista?
“A Alemanha não está procurando oportunidades para operações internacionais. Prefere agir no marco de operações autorizadas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas”, responde Helmut Sonnenfeldt.
Reforça Robin Niblett, pesquisador de Estudos Europeus do CSIS (Centro para Estudos Estratégicos e Internacionais, dos EUA): “Kosovo foi uma má experiência para os países europeus. Demonstrou que é difícil envolver-se em questões tão complexas e tende a tornar a Alemanha mais relutante em operar internacionalmente”
.
Reuters - 28.ago.99
O chanceler Gerhard Schroeder discursa durante campanha eleitoral na Alemanha

Parece ter razão, a julgar pelo mais recente “imbróglio” em que se envolveu o governo do primeiro-ministro Gerhard Schroeder.
O anúncio de que a Alemanha venderia um mero tanque de guerra à Turquia (país suspeito de violar os direitos humanos) provocou uma revolta dos parceiros “verdes” do premiê na coligação governante.
A nova Alemanha é cautelosa até no exercício de seus formidáveis músculos econômicos, embora seja a primeira potência européia, um terço maior que a segunda, a França.
Empurra para frente o seu veículo (a UE), em vez de passar para o assento da frente. Motivo: “Mais do que a França e o Reino Unido, o país precisa trabalhar no contexto da União Européia, para evitar suspeitas e reações de seus parceiros, que continuam temendo seu poder econômico”, responde Robin Niblett (CSIS).
Em todo o caso, não há pesquisador que negue que a Europa do Leste, ex-comunista, é uma espécie de quintal alemão, no qual o expansionismo germânico poderá, sim, ser exercido, do ponto de vista econômico e cultural.
“Há Institutos Goethe em toda a região, há uma Universidade Germano-Polonesa na fronteira entre os dois países, e as fundações alemãs são ativas nessa parte do mundo”, lembra Belinda Cooper, sobre o aspecto cultural.
Reforça, sobre a parte econômica, Jackson Janes:
“A Alemanha vai explorar agressivamente o mercado dos antigos países do Leste Europeu. É seu quintal natural”.

Limites do passado
Mesmo assim, o passado impõe limitações à expansão alemã, acha Sonnenfeldt: “Os próprios alemães não estão forçando a mão, por temerem um retrocesso por causa do passado” (afinal, tropas alemãs ocuparam, durante a guerra, quase todos os países do Leste Europeu).
Robin Niblett também acha que muitos dos países do Leste “têm suspeitas sobre o poderio alemão”. Tantas que o pesquisador do CSIS vê como mais provável uma aliança entre Espanha e Polônia, por exemplo, do que Polônia e Alemanha.
“São países médios, agrícolas e sequiosos pelas verbas de ajuda da UE aos países de menor desenvolvimento relativo”, diz Niblett.
Tudo somado, há razoável consenso, de todo modo, de que a expansão da UE para os países do Leste (cinco dos seis que estão adiantados no processo de negociações pertencem a essa região) poderá alterar o equilíbrio de poder na própria União Européia, hoje um condomínio dominado por França e Alemanha, com o Reino Unido disputando espaço.
“Em 5, 10 ou 20 anos, a Alemanha será mais poderosa na UE, na medida em que se tornará mais central com a ampliação, ficando a França e o Reino Unido mais na periferia geograficamente”, diz Niblett.
A mudança da capital alemã de Bonn para Berlim, este ano, também ajuda nesse processo de “orientalização”.
Afinal, a nova capital fica a apenas 30 quilômetros da Polônia, ao passo que a antiga está à mesma distância, mas de Bruxelas, a capital da União Européia.
Resta saber se esse novo papel da Alemanha, mais central, poderia fazer reviver as antigas tendências expansionistas e fazer a Alemanha abandonar o assento traseiro para ocupar o comando do veículo.
Jackson Janes acha que essa suposição equivale “a olhar a Europa pelo espelho retrovisor e vê-la pela ótica dos antigos Estados-Nações que estão perdendo poder”.

Novo tipo de animal
O que está surgindo na Europa é o que Janes chama de “um novo tipo de animal”, um conglomerado de nações como o é a União Européia.
Reforça Belinda Cooper: “Acho que a próxima superpotência pode muito bem ser a Europa como um todo, com a participação, mas não a dominação, alemã. Esse poder europeu, mais e mais, fornecerá um contrapeso aos Estados Unidos”.
Talvez não seja mero acaso que, no início do ano, o então ministro alemão das Finanças, Oskar Lafontaine, tenha proposto ao governo francês que unissem seus votos no FMI (Fundo Monetário Internacional), para “estabelecer um contrapeso contra a política vigente de consideração unilateral dos interesses norte-americanos”, como explicou Lafontaine em seu livro recém-lançado “O Coração Bate à Esquerda”.
Não deixa de ser uma eloquente ironia que a potência que ocupou a França há quase 60 anos tente agora se unir a ela para enfrentar a guerra econômica contra o país que derrotou a Alemanha e expulsou suas tropas do solo francês.
E é também uma alegoria sobre o predomínio do econômico no mundo moderno o fato de que essa nova batalha por influência se dê nos corredores acolchoados de uma instituição internacional, muito longe dos campos de guerra de outrora.
Talvez demonstre que FMI, uma sigla anódina em aparência, se transformou em palavra mais forte que Kaiser, Reich, Fuhrer.

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