São Paulo, quinta-feira, 4 de novembro de 1999




A sensação de ter
visto um filme errado


na Alemanha

“Muitos se perguntam se viveram errado. É como se tivéssemos saído do cinema com a sensação de que vimos o filme errado.”
É assim que o último primeiro-ministro da ex-Alemanha Oriental, o democrata-cristão Lothar DeMaizière, 58, define o que sente hoje grande parte dos “óssis”, que ele governou entre a queda do muro e a reunificação alemã.
Em entrevista à Folha, DeMaizière, um advogado atuante da Igreja Luterana, admite que a reunificação não foi exatamente o que ele esperava, mas rejeita a idéia de que a manutenção da divisão teria sido melhor.
Leia trechos da entrevista:

Folha - Como o sr. vê o processo de reunificação?
Lothar DeMaizière - Está sendo difícil. Eu achava que seria mais rápido e barato. Mas há muitos, muitos entraves de mentalidade.
Folha - Quais são?
DeMaizière - São tantos. Uma pessoa que é criada em uma ditadura tem outros valores. Existe, por exemplo, uma dor muito grande que cerca o conceito de justiça. Porque a justiça na RDA estava ligada à igualdade. Mas os conceitos e valores ocidentais viraram meta para tudo. Isso faz com que as pessoas se sintam desprezadas e cria uma tensão. É quando a saudade da segurança perdida se choca com o desejo da liberdade incerta. Há quem diga que é “síndrome de colonização”.
Folha - O sr. concorda que houve uma anexação, como dizem alguns alemães do Leste?
DeMaizière - Vocês não podem imaginar o que significa para um povo inteiro ter de aprender tudo de novo. A legislação mudou, o direito mudou, os formulários mudaram. Isso fez com que toda a experiência de uma vida ficasse inútil. Porque nesse processo, o professor foi sempre a RFA. “Wessi” virou sinônimo de “wissen” (saber melhor). Então muitos se perguntam se viveram errado. É como se tivéssemos saído do cinema com a sensação de que vimos o filme errado. Um dia, um grupo de velhos cantava antigas canções comunistas, e alguém mais jovem me perguntou: “Por que eles cantam essas canções da ditadura?”. Ora, porque eles não sabem outras. É assim em tudo.
Folha - Isso não foi previsto?
DeMaizière - Nós só tivemos tudo isso mais claro quando o processo começou. Porque não havia exemplo a seguir, não havia para onde olhar para ver como os outros tinham feito. Batalhamos muito para que os diplomas universitários da RDA fossem aceitos na reunificação. A RFA não queria, mas eu dizia: “A gente não pode roubar a biografia das pessoas”. Só que hoje não tem ninguém interessado nessas pessoas.
Folha - O resultado faz o sr. se arrepender do que defendeu?
DeMaizière - Moisés conduziu seu povo pelo deserto durante 40 anos para sair da opressão egípcia. Na metade do caminho, uma parte do povo queria voltar, dizendo que, apesar de opressor, o Egito era melhor porque eles tinham comida e roupa. Diziam que o caminho para a liberdade era muito cansativo. Outra parte do povo queria seguir em frente. Estamos nesse ponto. Eu sei que parte do povo está decepcionada, mas temos que seguir adiante.
(SÍLVIA CORRÊA)
(FERNANDA DA ESCÓSSIA)


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