Crítica - Romance
Trama envolvente de McEwan foca dilemas da religião e da Justiça
'A Balada de Adam Henry' narra embate entre juíza em crise no casamento e família de Testemunhas de Jeová
TRATA-SE DE UM MUNDO ONDE É COMUM O ESQUECIMENTO DOS ENGANOS COMETIDOS PELOS OUTROS. A ESCRITA ENVOLVENTE DE MCEWAN ENTRELAÇA MELANCOLIA E ROTINA
LUÍS FRANCISCO CARVALHO FILHO COLUNISTA DA FOLHAFiona Maye, personagem do último livro do escritor britânico Ian McEwan, é uma mulher sofisticada que se dedica, como juíza em Londres, a julgar dramas familiares enquanto a própria vida --sua relação com o marido-- parece desmoronar.
O enredo se desenvolve a partir da decisão de um adolescente, com leucemia, a não se submeter a transfusões de sangue.
O jovem Adam Henry herdou dos pais a crença nas Testemunhas de Jeová. A mistura de seu sangue com o sangue de outra pessoa é uma forma de poluição que a Bíblia condena. A morte pela recusa à medicina seria um desígnio de Deus: deve o Judiciário interferir?
Mas a narrativa de McEwan também expõe conflitos extremos de outras religiões. O casal judeu ultraortodoxo se desentende por causa da formação das filhas e da tradição de que mulheres não precisam se dedicar ao estudo e ter profissão.
O muçulmano liberta a filha dos males do Ocidente, levando-a para Marrocos contra a vontade da mãe. O casal católico não autoriza a cirurgia corretiva para separar filhos siameses porque resultaria na morte deliberada de uma das crianças.
ENGANOS VERDADEIROS
Além do sofrimento pessoal e dos dilemas morais, sinceros e práticos que invadem o seu gabinete de trabalho, a juíza Fiona tem que lidar com o estranho assédio promovido pelo rapaz doente.
A construção ficcional que McEwan realiza em "A Balada de Adam Henry" se faz com precedentes judiciais verdadeiros.
Assim, o constrangedor encontro de Fiona Maye, nos corredores do fórum, com um juiz bem-humorado e falante, protagonista de um dos mais escandalosos erros judiciários dos tempos modernos, é uma alusão ao episódio real da inglesa Sally Clark, condenada injustamente à prisão perpétua pelo homicídio de dois filhos bebês.
Trata-se de um mundo onde é comum o esquecimento dos enganos cometidos pelos outros. McEwan, com a escrita envolvente que marca os seus romances, entrelaça melancolia e rotina.
Aborda também o envelhecimento de uma mulher que optou por não ter filhos para se dedicar à Justiça e que agora, aos 60 anos, sente-se ameaçada pelo "verme da suspeita" que infesta o seu passado.