Crítica - Mostra Internacional de Teatro
Espetáculo sem atores retrata ausência pós-Samuel Beckett
Se um mal súbito varresse da Terra a humanidade, durante um lapso temporal ao menos restaria algo de humano em movimento: nas esquinas, as cores trocando de posições nos faróis; nos Andes, a circulação de um teleférico, como aquele coelhinho batendo pratos na propaganda das pilhas Duracell.
Então, vagariam pelo universo nossos quadros, livros, prédios, computadores. Cidades inteiras tornar-se-iam uma memória física, uma impressão digital.
Mas o que esse retrato por ora nonsense tem a ver com "Stifters Dinge", que o alemão Heiner Goebbels traz para a 2ª MITsp - Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (hoje, há sessões às 17h e 21h)?
O espetáculo coloca em cena uma máquina composta de pianos, espelhos d'água, tecidos, holofotes, caixas de som. Em uma montagem teatral sem atores, torna-se iminente a imagem de um planeta sem o homem. Não se trata da representação do fim do mundo, mas do que vem depois.
Essa é uma interpretação rasa, talvez, pois, sob a ótica das artes visuais, "Stifters Dinge", com suas paisagens visuais e sonoras em movimento, poderia significar o contrário. Mas a relação com a história do teatro se faz elementar. O autor quis criar um espetáculo teatral sem atores, atesta. No mais, é simbólico, a obra está no palco.
Vivemos sob a sombra de Samuel Beckett (1906-1989), criador da imagem de um homem paralisado por uma espera, inerte na aproximação infinita de um fim. Nos anos 1960, o irlandês compôs uma peça sem atores, "Breath" (1969), que tem apenas 25 segundos e intercala o som de choros e respirações.
A figura do ator foi até aqui um órgão não inerte em cena, transformador de memórias (ou de um texto), sendo transformado por ela às vistas da plateia.
O maquinário de Goebbels, seguindo passos de Beckett, acrescenta à história do teatro a subtração desse sistema aberto. Restam pianos-robôs sobre o palco --e o público vê as teclas em movimento. Compõe-se ali uma memória fantasmagórica, uma ausência, e os conflitos humanos esvaídos enfim. Uma peça essencial.