Travessia clandestina
Fuga de conflitos faz Itália bater recorde de imigração pelo mar
Sírios são maioria entre as 163 mil pessoas resgatadas no Mediterrâneo até o fim de novembro
A bandeira da guarda costeira tremula às 8h (5h em Brasília) anunciando o navio italiano Comandante Borsini no porto de Augusta, na região da Sicília.
Trinta policiais, oito médicos e alguns voluntários aguardam em solo. Centenas de pessoas estão sentadas no convés da embarcação com máscara de proteção.
São 320 homens, mulheres e adolescentes resgatados na véspera cruzando clandestinamente o mar Mediterrâneo, em barcos de pesca e botes infláveis, na rota do continente africano rumo à Europa.
Mais precisamente, 109 da Somália, 81 da Costa do Marfim, 71 do Senegal, 24 de Gâmbia e 23 do Mali --os demais de outros sete países africanos.
A maioria partiu da Líbia e pagou até € 2.000 (cerca de R$ 6.500) a aliciadores que prometem o paraíso para quem chegar com vida do outro lado do mar.
O ano de 2014 bateu um recorde. Segundo a Organização Internacional de Migração, mais de 163 mil pessoas foram resgatadas a caminho da Itália pelo Mediterrâneo até o fim de novembro, mais que em 2013 (42.925) e qualquer período anterior.
O número chega a 200 mil, levando em conta toda a costa da Europa, segundo a ONU.
Estima-se que ao menos 3.000 tenham morrido no trajeto, marcado por falta de alimentos, oscilação de temperaturas e ventos de 150 km/h. A travessia pode durar de 20 horas a cinco, seis dias.
"São pessoas que fogem de conflitos na Síria e em países africanos ou que tentam escapar da pobreza", diz à Folha Francis Markus, porta-voz do Acnur (Alto Comissariado da ONU para Refugiados).
Mohamed Abdi deixou a família em Mogadício, capital da Somália, para encarar cinco dias pelo mar até ser resgatado. Antes de subir num barco na Líbia, viajou em terra por Etiópia e Sudão. Desembarcou em Augusta sem documentos e com a roupa do corpo. Diz ter 23 anos.
BOLO COMPARTILHADO
Para sobreviver, dividiu pedaços de bolo e garrafas de água. Agora seguro e em solo, estampa no peito o adesivo "43" de identificação.
A Folha teve de pedir permissão à Prefeitura de Siracusa, que controla o porto na província homônima, para acompanhar o desembarque. Uma condição para a autorização era que fossem evitadas entrevistas.
Mas o próprio Mohamed Abdi fez a abordagem ao perceber um telefone no bolso do repórter: "Você poderia me ajudar? Preciso avisar minha mãe que cheguei vivo", pede, em inglês.
A polícia percebe o movimento e o afasta. Quer evitar qualquer comunicação, até porque tenta encontrar e prender aliciadores.
Também da Somália, Abdi Gani é outro que se aproxima e conta os próximos planos: "Não quero ficar na Itália. Vou tentar chegar à Suíça. Meu irmão veio de barco há três anos e conseguiu ir para lá".
Ele diz ter 17 anos --algo que deverá ser confirmado pelo teste do pulso (que mede a idade óssea), já que muitos se apresentam como menores para ter mais chances de ficar na Itália.
Abdalam Ali afirma ter 18 anos e diz que a ação do terrorismo na Somália, sobretudo da milícia Al Shabaab, o levou a fugir do país.
Apesar da viagem perigosa e exaustiva, o cansaço nem parece ser o maior dos problemas para eles.
Pelo contrário. Muitos não param de conversar, eufóricos por terem chegado com vida, mesmo sem expectativa. "Não é pior do que na Somália", afirma Wardo, uma jovem que se diz com 16 anos e sem sobrenome.
PRIMEIROS SOCORROS
O rito do desembarque começa com um grupo de 20 mulheres e outro de 15 identificados como menores que saem na frente, seguidos pelos demais.
Um par de chinelos e uma garrafa de água são as primeiras coisas que recebem, antes de entrar na fila de triagem médica para diagnosticar viroses, doenças de pele e gastrointestinais.
Com sarna (escabiose), cinco são separados e obrigados a vestir roupas especiais.
Ainda no porto, os africanos são escoltados até tendas com macas. Descansam e também disputam copos de leite e biscoitos, distribuídos por voluntários como Giorgio Atilaro, 60. "Já vi uns 20 mil por aqui desde março", conta.
Duas horas se passam, e ônibus vazios começam a chegar ao porto de Augusta. Às 11h, os imigrantes sobem em fila indiana nos veículos e são levados para centros de recepção, em cidades da Sicília. Começa aí outro drama na vida de cada um para tentar permanecer na Europa.
Do total de resgatados em 2014, 23,9% são sírios que fogem da guerra civil no país. Ao menos 90% dos imigrantes usaram a Líbia como ponto de partida em 2014.
Estima-se que 500 mil de diversos países, sobretudo da África, estejam em território líbio juntando dinheiro para um dia atravessar o mar.
"A instabilidade política e os distúrbios na Líbia têm deteriorado a situação do país, criando um ambiente facilitador para a passagem interna e a partida dessas pessoas para a Itália", diz Flavio Di Giacomo, da Organização Internacional de Migração.
O movimento não parou mesmo após uma das maiores tragédias do Mediterrâneo, em outubro de 2013, quando 366 africanos morreram a cerca de um quilômetro da ilha italiana de Lampedusa.
"O conto da travessia sempre começa com a plena consciência do risco de morte e a impossibilidade de qualquer alternativa", diz a italiana Giovanna di Benedetto, da ONG Save the Children, que fiscaliza os desembarques por causa dos menores.
A operação de desembarque em Augusta acompanhada pela Folha faz parte de uma rotina cuja divulgação constante pouco interessa à Itália, que não quer estimular o movimento nem transformar o país no símbolo de uma rota de fuga --parece ser tarde demais para isso.