Magna Carta é peça de museu?
A Magna Carta se mantém viva porque trata de uma questão fundamental: a relação entre o indivíduo e o poder dos que os governam
Nas escolas do Reino Unido, jovens aprendem a rima "Bad King John in 1215 Signed the Magna Carta on Runnymede Green" (em português, "O malvado rei João, em 1215, assinou a Magna Carta em Runnymede Green").
Isso diz algo sobre o poder desse documento na atualidade, que completa 800 anos nesta segunda-feira (15). Sua força é ainda mais evidente se lembrarmos que a Magna Carta prosperou em vigor mesmo tendo sido anulada poucas semanas após sua assinatura.
Da gravura que conta a sua história numa das portas de bronze da Suprema Corte dos Estados Unidos à defesa de Nelson Mandela durante seu julgamento na África do Sul, em 1964, ainda se mostram vivos os princípios da Magna Carta. Não, definitivamente, não se trata de uma peça de museu.
E por que a Magna Carta ainda é relevante? Primeiramente, ela não é um produto de teoria abstrata, mas de uma realidade: a realidade da resistência a um rei arbitrário e falido, tentando tirar dinheiro do povo para financiar a guerra.
Em segundo lugar, porque é um documento flexível, que permite a interpretação e aplicação do senso comum, em vez de argumentações intermináveis sobre o processo. Muitas das cláusulas da versão original foram extintas, só que a essência do documento sobreviveu.
Mas o mais importante é que a Magna Carta se mantém viva porque trata de uma questão fundamental: a relação entre o indivíduo, "nós", e o poder daqueles que nos governam, "eles". A Magna Carta foi uma primeira tentativa de limitar esse poder, de mostrar que há regras que os controlam e que os indivíduos devem ter acesso a elas.
A cláusula que melhor resume isso é esta: "Nenhum homem livre será detido, aprisionado ou privado de seus direitos ou patrimônio, ou declarado fora da lei, ou exilado, ou de outro modo privado de sua condição, bem como não procederemos nem mandaremos proceder contra ele senão mediante um julgamento legal pelos seus pares ou pelas leis locais", em tradução livre.
Os dizeres continuam aplicáveis, tendo sobrevivido às mudanças dos significados de expressões básicas, como "homem livre", cuja conotação é completamente diferente no feudalismo britânico ou na escravidão no Brasil em comparação às modernas democracias de que ambos os países desfrutam hoje.
A relação com o poder também mudou, da monarquia absolutista do rei João "Sem Terra" à República brasileira. Mas os riscos de abuso de poder e a necessidade de leis para restringi-lo ainda existem.
A Magna Carta é um patrimônio internacional. Ela foi inspiração para a Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela Organização das Nações Unidas em 1948. Sua importância para o futuro também é reconhecida: existe um debate sobre a criação de uma versão da Carta on-line e sobre os direitos mais aplicáveis na era digital.
O princípio do Estado de Direito é o que torna a Magna Carta importante para cada um de nós. Ela sobreviveu por ser flexível e pragmática, e não ideológica e rígida.
As leis e sua inteligente aplicação permanecem fundamentais para o progresso social e econômico, de Londres a Londrina, de Manchester a Manaus. A origem é britânica? Sim, mas sua abrangência é global.
Como muitos brasileiros sabem, cerca de sete séculos após o governo do "malvado Rei João ", um jovem brasileiro-britânico chegou a Santos com uma bola de futebol e um par de chuteiras --e o resto, como dizem, é história.
Entretanto, talvez o item mais importante trazido por ele não tenha sido nem a bola nem os sapatos, mas um simples livro de regras do futebol em sua mochila.