Descrição de chapéu

Em novo 'Manual' leitor é consumidor, não mais cidadão

Há que considerar que ameaça à boa imprensa nasce do consumismo e do esvaziamento da cidadania

RENATO JANINE RIBEIRO
A nova versão do "Manual da Redação" - Gabriel Cabral/Folhapress

O "Manual da Redação" da Folha chega a uma nova edição. É um bom instrumento para os jornalistas e também para o público em geral, ensinando um português correto, mas próximo do falado —além de informações sobre assuntos de interesse público, aqueles de que um jornal trata.

Vi poucos problemas, como o uso da grafia "educação à distância", quando o MEC e a área preferem omitir a crase. Mas isso não é grave. Penso que o "Manual" poderia sugerir aos jornalistas da casa que não usem "refutar" no sentido de "negar", mas essa falta pode ser sanada no futuro.

("Refutar" é desfazer uma crítica com fatos e argumentos. "Negar" é apenas negar, sem fatos ou argumentos suficientes. Fica a dica.)

A parte sobre educação é boa. Começa dizendo quantos alunos há na educação regular no Brasil, informação que não é fácil o leigo obter.

Explica os grandes temas da educação —senti, contudo, falta da pós-graduação.

A Folha incentiva seus leitores a fazer cursos desse nível, até publica suplementos sobre ela: poderia explicar a diferença entre a pós-graduação sem tese, a "latu sensu" —que é uma especialização, geralmente oferecida por instituições de ensino com fins lucrativos (pois é um bom negócio), e é a modalidade de que a Folha trata mais—, e o mestrado e doutorado, que são a pós-graduação "stricto sensu", com dissertação ou tese, oferecida quase sempre por instituições públicas e gratuitas, ou privadas sem fins lucrativos.

Também poderia ter mostrado a evolução do ensino fundamental, que melhorou desde que Fernando Haddad criou um indicador especial para avaliá-lo, em 2007.

Faltou, ainda, uma distinção importante, entre universidades públicas (federais ou estaduais, gratuitas), privadas (todas as outras) e, entre as privadas, as particulares (com fins lucrativos) e comunitárias e/ou confessionais (pagas, mas sem fins de lucro). Em nosso ensino superior, as melhores geralmente não buscam o lucro.

Mas o que aponto aqui são faltas, não falhas.

CONSUMIDOR

O problema no "Manual" é o seguinte: ele começa dando ao leitor o tratamento de "Sua Excelência". Mas não o chama de leitor, e sim de "consumidor de notícias". O que complica as coisas.

Faz alguns anos a imprensa —sobretudo os "quality papers", jornais não sensacionalistas e de qualidade na apuração dos fatos— enfrenta forte concorrência da internet, que é gratuita e dá a informação na hora.

Caiu no mundo o número de assinantes e anunciantes. O poder da imprensa diminuiu —para o mal (favorecendo "fake news"), às vezes para o bem (abrindo lugar para novas vozes).

A resposta desses jornais foi a mesma: não damos só notícias, fornecemos análises. Essa é a única estratégia possível, embora a internet também tenha análises excelentes. Mas análises servem para desfrute imediato?

"Consumir" é ingerir rapidamente e com prazer. Já uma análise não é de consumo fácil. Exige que a pessoa pense. Não tenho preconceito contra o consumo, mas há esferas importantes da vida em que ele não é adequado. Uma delas é a tomada de posição diante do mundo, que é o que as boas análises de jornal devem permitir.

A Folha saiu do Facebook. Decidiu combater as "fake news", em especial nas redes. Mas, se notícias forem para consumir, qual artigo de consumo é mais apetitoso? O que está nas redes ou o do jornal? O fake ou a verdade?

Vejam Bolsonaro. Sua projeção deve muito a Luciana Gimenez. Ela o convidava para seu programa de entretenimento. Seus excessos divertiam. Ele era quase histriônico. Gerava público.

Das variedades, Bolsonaro passou ao primeiro caderno dos jornais. Ele é um produto de consumo melhor do que qualquer um de nós, que pensamos (com razão ou sem) escrever coisa séria.

Sua projeção não se deve só a ele, ou ao "Super Pop", mas a um esvaziamento da cena política —que, aliás, favoreceu outro personagem de variedades, Luciano Huck.

Não estou, porém, perguntando aqui se Bolsonaro ou Huck é bom para o Brasil. Minha questão é se um jornal bom pode rivalizar com eles na oferta de bens de consumo.

Gerações formadas no clipe de música, depois no smartphone, apps e redes sociais não têm a paciência da leitura, que o jornal de qualidade exigia e satisfazia.

Alguns jornais inovam, somando as análises a recursos ágeis de comunicação. Mas isso custa caro e nem sempre conquista quem não gosta de ler. O que suspeito é que, se o leitor vira consumidor, a Folha —por suas qualidades— não é o fornecedor mais competitivo.

Dá vontade de dizer que o leitor deveria ser visto mais como cidadão do que como consumidor. Mas o jornal sabe disso. No Projeto Editorial, a palavra cidadão aparece três vezes, só que nunca sozinha: uma vez como leitor-cidadão, duas como cidadão-contribuinte.

Se o jornal preferiu falar em consumo a falar em cidadania, deve ser porque, sem consumo, teme perder público. Mas o leitor deve ter ciência de que o esvaziamento da cidadania e o crescimento do consumo são os termos do conflito que hoje ameaça a boa imprensa.

RENATO JANINE RIBEIRO, ex-ministro da Educação (2015, gestão Dilma), é professor titular da USP, na disciplina de ética e filosofia política.

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