Filme retrata classe média baixa que vive nos arredores da Disney World

'Projeto Flórida' adota a perspectiva de crianças e estreia na quinta (1º)

Guilherme Genestreti
São Paulo

Em certo momento do filme "Projeto Flórida", um casal de brasileiros em férias na Disney World se decepciona ao descobrir que o hotel em que fez reserva é uma espelunca: misto de conjunto habitacional com motel de beira de estrada que envergonharia qualquer agência de viagens. Os dois começam a brigar, a mulher bem mais frustrada do que o marido.

A rápida cena resume o paradoxo do drama dirigido pelo nova-iorquino Sean Baker, que estreia nesta quinta (1º).

Nos arredores dos parques temáticos de Orlando, na Flórida, um prédio depauperado é lar para toda sorte de americanos semimiseráveis. O nome do lugar não poderia ser mais irônico: Magic Castle (castelo mágico).

"Embora o problema da moradia seja comum ao país inteiro, essa é uma história que só poderia acontecer naquele lugar", diz o diretor à Folha, por telefone. Ele afirma que buscou retratar o que chama de "desabrigados ocultos". "Os turistas chegam ali aos milhões, gastam os tubos, mas não fazem ideia do que acontece às sombras."

É nessas "sombras" que vivem Moonee (Brooklynn Prince), menininha de seis anos que cresce desregradamente, e sua mãe, a pós-adolescente Halley (Bria Vinaite), trambiqueira que se mantém entre a prostituição eventual e pequenos golpes nos turistas.

Também circulam por ali outros desvalidos do sistema, como o comiserado síndico Bobby (Willem Dafoe, indicado ao Oscar de ator coadjuvante pelo papel), a garçonete Ashley (Mela Murder) e, sobretudo, as crianças com quem Moonee apronta e cujo ponto de vista guia a história.

"O filme tinha que adotar essa perspectiva porque o mote dele é como as crianças crescem nas cercanias do lugar tido como o mais mágico do mundo", diz Baker, que escreveu o roteiro com Chris Bergoch a partir de entrevistas com moradores locais.

UNIVERSOS COLORIDOS

Ainda que apartadas do reluzente império do Mickey, as crianças do filme circulam por seus próprios universos coloridos —sorveterias, lanchonetes, lojas mequetrefes e hipermercados de fachadas kitsch, com os quais o diretor faz questão de saturar a tela.

Alguns dos atores foram pinçados entre anônimos, caso da ultratatuada Bria Vinaite, achada pelo diretor ao acaso, graças a seu singelo perfil no Instagram, repleto de imagens em que ela aparece fumando maconha e dançando com um boá de plumas rosa.

Lançado no Festival de Cannes do ano passado, apenas quatro meses após a posse de Trump, "Projeto Flórida" se tornou um dos títulos mais elogiados daquela edição da mostra e foi saudado como ponta de lança na nova onda de filmes americanos com pegada de realismo social.

"Talvez eu seja parte de uma tendência, mas diria que exponho a realidade de certa classe média baixa justamente porque suas vozes não costumam ser ouvidas", diz Baker, 46, que moldou sua carreira sobre esse segmento.

Sua estreia, "Four Letter Words" (2000), tratava do linguajar de americanos suburbanos para falar de masculinidade. Em "Prince of Broadway" (2008), filmagens com cara de caseiras davam conta da história de um trombadinha de Nova York que se descobria pai.

Mas foi com "Tangerine" (2015) que Baker fez história. O filme sobre duas prostitutas transgênero em Los Angeles foi o primeiro longa filmado inteiramente com um iPhone. Uma bicicleta conduzida pelo próprio diretor ajudou nas cenas panorâmicas. "Creio que todos os filmes tenham de extrapolar os limites de alguma forma", diz.

Alguns dos aspectos de "Tangerine" se repetem em "Projeto Flórida", embora esse último tenha sido rodado em 35 milímetros. Além das cores saturadas, ambos cavoucam certo "bas-fond" dos trabalhadores do sexo.

"A economia 'underground' carrega um estigma enorme, e meus filmes giram em torno de não julgar o diferente. Não quero mudar a mente do público, mas quero que questione suas opiniões."

Seu próximo projeto é uma comédia romântica —mas entre "junkies".

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