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Morador de favela no Rio, Geovani Martins desponta como escritor

Aos 26 anos, ele estreia com 'O Sol na Cabeça', um conjunto de 13 contos

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O escritor carioca Geovani Martins em rua do Vidigal
O escritor carioca Geovani Martins em rua do Vidigal - Zô Guimarães/Folhapress
São Paulo

A leitura, para Geovani Martins, começou como encenação. Aos quatro anos, o menino levava revistas em quadrinhos para a rua e contava as histórias que havia decorado a partir das leituras de sua avó —e fingia para os amigos que as estava lendo. 

Já a escrita —outra forma de encenação— veio mais tarde, adolescente, quando passava períodos que a ele pareciam estranhos: abria um Machado de Assis e se via espantado com sensações, às vezes se emocionava.

“Me interessei pela possibilidade de mexer com os outros por meio das palavras. E vi que era possível, porque estavam fazendo aquilo comigo”, diz ele, morador da favela do Vidigal.

Com 26 anos ele estreia como escritor em uma história para lá de improvável. Seu “O Sol na Cabeça”, um conjunto de 13 contos, chega às livrarias pela Companhia das Letras —com os direitos já vendidos para nove países nos últimos meses.

No exterior, o livro sairá por algumas das maiores editoras do mundo: Farrar, Straus & Giroux (EUA), Faber & Faber (Reino Unido), Suhrkamp (Alemanha) e Mondadori (Itália), entre outras. Nesta semana, a obra também foi vendida para a China.

“O Sol na Cabeça” foge dos estereótipos sob os quais um autor com a origem de Martins costuma ser visto. Mas é claro que a maioria de seus personagens são da favela —e deles ele nunca diz a cor, para provocar o leitor a pensar por que nas situações narradas os imaginamos negros.

É claro que seu universo de vida está lá, como em um conto que descreve o ódio e a tristeza que um rapaz negro sente por ser olhado com medo por um homem no ponto de ônibus, sentimento que conhece bem. Ou no conto que mostra o ceticismo com as UPPs. Ceticismo que se estende à intervenção federal no Rio.

“É impossível achar que vai dar certo, porque temos 30 anos com a mesma política de drogas, que sempre deu errado. Agora é a mesma coisa, só que com um poder a mais, o poder militar”, diz.
 

Homem-placa

Rapazes com a vida de Martins não costumam virar escritores. Nascido em Bangu, zona oeste do Rio, filho de uma cozinheira e um jogador de futebol amador, ele trabalhou desde cedo. Distribuiu papéis de empréstimo fácil, foi homem-placa, entregador de comida, garçom em casas de festa e em barraca de praia. Largou a escola na oitava série.

Além do Vidigal, viveu na Rocinha e na Barreira do Vasco. Da sua sala, vê o ocre dos barracos e o azul do mar. 

Foi alfabetizado pela avó e passou a pedir livros sempre que podia. Durante toda a vida, leu sempre e muito —primeiro best-sellers, depois autores canônicos como Machado e Drummond. Mas só agora consegue comprar livros novos —antes recorria a sebos. 

O sol estava mesmo na cabeça em parte importante dessa trajetória. Quando seu emprego era carregar, em uma bicicleta, a placa de um candidato de esquerda de uma ponta a outra de Copacabana, Martins imaginava histórias.

Em dado momento, o partido achou que estava muito duro pedalar naquele calorão —e o colocou para vigiar uma placa ao lado de uma estação de metrô. Então, ele passou a ter oito horas por dia para ler (com um olho no livro e outro na placa, é claro).

Com Graciliano Ramos, lembra, aprendeu que era preciso escrever como as lavadeiras de Alagoas: primeiro molhar, depois torcer, molhar de novo, torcer outra vez, colocar anil e sabão, torcer de novo, enxaguar, bater na pedra limpa, até não pingar uma gota. Só depois o varal.

“Aprendi que a palavra não foi feita para enfeitar, mas para dizer”, afirma ele.

Oficina literária

A virada veio em uma oficina literária com o poeta Carlito Azevedo, na Biblioteca Parque da Rocinha, em torno da antiga revista literária “Setor X”, em 2014. O autor pediu para os alunos escreverem um conto a partir da notícia da morte do cinegrafista da Band Santiago Andrade, atingido por um rojão de um manifestante.

Alguns alunos escolheram a polícia, outros os manifestantes ou o cinegrafista —Martins imaginou o rojão, que se sentia feliz por, ingênuo, acreditar ser levado para alegrar uma festa.

“Ele escolheu um ângulo inesperado. Geovani é aquele craque que, em vez de ser só ótimo em uma jogada conhecida, descobre uma inesperada. O rojão era o único elemento da cena que não vinha com psicologia pronta”, afirma o poeta e instrutor.

Azevedo se lembra de chegar a uma aula e encontrar Martins com “Hamlet” no colo, reescrevendo a peça de Shakespeare em um caderno.

“Já era sintomático que o Geovani pegasse algo psicologicamente tão denso e problemático. Tinha uma forma de olhar para o mundo e escutar tudo que era dito. Não sabia quanto tempo ia levar, mas sabia que uma hora ia acontecer [de ele ser descoberto].”

Dali, Martins ainda faria oficinas da Flupp (Festa Literária das Periferias), onde conheceu alguns escritores. Chegou a ir à Flip, em 2015, apresentar a “Setor X”. Foi quando pediu à mãe para voltar a morar com ela.

“Falei: ‘Mãe, eu quero fazer um livro, que vai possibilitar viver de livro —é o que eu sei e posso fazer. Não posso trabalhar fora para fazer isso, porque esse livro precisa ser muito melhor do que muita coisa. E para isso preciso trabalhar muito’”, diz o escritor.

“Não tenho profissão, não tenho estudo, a falta de perspectiva me agoniava. Por isso resolvi apostar”, completa.

Neide, mãe do escritor, afirma: “Sempre gostei dessas coisas [arte]. Mas, com uma vida muito sacrificada, não podia fazer nada. Gostava de música, dança. Consigo ver no Geovani o que eu não fui”.

Além da confiança de Carlito Azevedo e outros, havia uma previsão. Em consultas com Zé das Moças e o povo da rua (exus, pombagiras etc.), entidades de umbanda, o jovem escritor ouviu: sim, os caminhos estavam abertos, mas isso de nada adiantaria se ele não estivesse preparado.

Martins então dedicou-se a uma disciplina monástica. Escrevia muitas horas por dia, mas, dono de estilo econômico, pouco. Primeiro à máquina de escrever, por falta de computador. Hoje, depois da máquina, digita na tela, lê em voz alta para si e depois para os outros —em cada passo os textos são reescritos.

“Pensava muito no meu pai, que foi um craque do futebol e não se profissionalizou. Eu sentia esse medo de ser uma promessa só”, diz.

A última virada veio na Flip de 2017, onde Martins esteve outra vez. O escritor Antonio Prata, colunista da Folha, já havia lido textos dele e soprou a dica para a Companhia das Letras. Na Feira de Frankfurt, com contrato fechado, o livro de contos já começou a ser vendido para o exterior. 

“Ele mostra nos contos quão sutil, poderoso e puro é o seu controle da linguagem, cheio de nuances, compressão temporal, viradas. Ele sabe construir a tensão a partir do nada e parece capaz de assumir a voz de qualquer pessoa”, diz Frank Wegner, editor da Suhrkamp.

O escritor, que ainda não se sustenta só com o ofício, trabalha agora em um romance. Não há previsão de lançamento da obra, que sairá pela Companhia.

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