Descrição de chapéu series polícia federal

Padilha nega proposta da PF de apoio em troca de acesso aos roteiros de série sobre a Lava Jato

Como consequência, precisou retratar a polícia como federativa em 'O Mecanismo'

Gustavo Fioratti Wálter Nunes
São Paulo

Em troca de informações e da cessão do uso da imagem de insígnia e do nome da instituição, a Polícia Federal agiu para preservar sua imagem junto a obras de cinema e de TV brasileiras, pedindo inclusive acesso ao processo de criação de obras nessas áreas.

Selton Mello vive na série 'O Mecanismo' um dos agentes que atua na Lava Jato; produção rejeitou acordo com a PF e precisou colocar nome fictício em placas e coletes - Divulgação

Um dos principais instrumentos utilizados pela instituição, que é pilar da Lava Jato, é um termo apresentado às produções que pedem auxílio para criar tramas sobre a rotina policial e também sobre casos de corrupção.

A existência do termo foi confirmada pela própria assessoria da Polícia Federal quando a instituição foi questionada sobre a série "O Mecanismo", da Netflix, que aborda a Operação Lava Jato e estreia no próximo dia 23.

A instituição disse não ter colaborado com José Padilha, criador da obra, porque sua produção havia se recusado a assinar o documento.

Uma cláusula delimita a forma como a PF poderia ser retratada. O termo foi assinado, por exemplo, pela produção de "Polícia Federal - a Lei É para Todos", filme nacional de maior público em 2017, com cerca de 1,4 milhão de pessoas.

A série "O Mecanismo" tem ambientação parecida com a de "Polícia Federal", recupera os principais personagens e fatos da Lava Jato.

Os protagonistas dos primeiros capítulos (Selton Mello e Caroline Abras) correspondem aos agentes da Polícia Federal que iniciaram a megaoperação a partir da prisão do doleiro Alberto Youssef.

Por não ter assinado o termo, disse a PF, a produção da série não pôde usar insígnias da instituição, senão por modelos modificados.

É por essa razão que, em alguns coletes e símbolos usados por personagens, o espectador vai ler Polícia Federativa no lugar de Polícia Federal.

Advogados consultados pela Folha afirmaram que símbolos públicos são protegidos pelo Código Penal, mas a lei não é clara sobre a utilização.

"Se você faz o uso indevido de imagens, símbolos, siglas, de qualquer tipo de meio distintivo de instituições públicas, está cometendo um crime", disse o advogado Rafael Werneck, especialista em propriedade intelectual.

Para ele, a expressão "uso indevido" deve ser analisada caso a caso. "Se a série comentar sobre eventual corrupção dentro da Polícia Federal, é uso indevido?", questiona-se.

Os símbolos da PF são protegidos também por decreto federal de 1989. A série decidiu ainda alterar nomes de figuras públicas e empresas.

OFERTA

Segundo o diretor José Padilha, a produção de "O Mecanismo" sequer pediu auxílio à instituição federal.

"Na verdade, o então chefe da Polícia Federal em Brasília, Leandro Daiello, me ligou em Los Angeles, ainda quando estávamos redigindo a série. Ele me ofereceu locações, apoio logístico, acesso aos policiais, viaturas e até análise jurídica. Para isso, a PF precisava ter acesso aos roteiros", conta Padilha.

"Esse tipo de colaboração, em que uma entidade do Estado quer ler roteiros em troca de benesses para a produção não faz sentido para nós", prossegue.

"Afinal, por que só a Policia Federal? Será que só a Policia Federal quer preservar a sua imagem? E se o STF nos oferecesse apoio desse tipo? Ou o Senado? Ou a Presidência da República? Ou o TRF-4? Ou a Procuradoria Geral da República? No final do processo, teríamos uma série chapa branca. De modo que eles têm toda razão: não topamos assinar o termo de colaboração mesmo."

FONTES

Procurados, Daiello não foi localizado e a PF não comentou as implicações do acordo. A produção de "O Mecanismo" usou como uma de suas fontes o livro "Lava Jato - O Juiz Sergio Moro e os Bastidores da Operação que Abalou o Brasil", do jornalista Vladimir Netto.

A produção da série também contou com a consultoria de Jorge Pontes, delegado da PF aposentado e ativo militante de grupos de direita. Este se notabilizou por convocar atos contra governos petistas e atuar junto a grupos como o Vem para a Rua.

O produtor do filme "Polícia Federal - a Lei É para Todos", Tomislav Blazic, diz que a colaboração da PF para a pesquisa da produção de fato prosseguiu após a apresentação de um termo pela polícia. Para ele, isso é normal. "A polícia americana faz a mesma coisa a torto e a direito."

Nem a produção nem a instituição permitiram que a reportagem tivesse acesso ao documento. Blazic também nega que a PF tenha exigido acesso ao roteiro. "Nunca e em nenhum momento", diz.

Além de fontes oficiais, "Polícia Federal" teve a colaboração de Marcio Derenne, delegado que foi assessor de Jorge Picciani (MDB) no Ministério dos Esportes e subsecretário geral de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro.

Carlos Graieb, jornalista que escreveu livro homônimo que deu origem ao filme "Polícia Federal", ex-jornalista da Veja e hoje chefe da assessoria do governador Geraldo Alckmin (PSDB), diz que não assinou termos com a PF e nega interferência em sua obra.

Ao prescindir da colaboração, "O Mecanismo" promete um retrato menos brando da PF? "Não vou te contar. Mas o Brasil não é um país feito de mocinhos e bandidos, isso eu garanto", afirma Padilha.

Nos três primeiros capítulos da série, antecipados para a imprensa, a PF ainda está do lado dos mocinhos.

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