Público negro lota sessões de 'Pantera Negra'

Em Nova York, plateia reage ao filme com gritos e aplausos em ritual de autoafirmação coletiva

Silas Martí
Nova York
Público aguarda início da sessão de "Pantera Negra" em uma das salas do complexo de cinemas Magic Johnson, Harlem, histórico bairro negro de NY - Andrew Kelly/Reuters

Os corredores do Magic Johnson Theatre estão abarrotados. Em sessões de hora em hora em duas das nove salas desse cinema do Harlem, o histórico bairro negro de Nova York, "Pantera Negra" parece passar quase sem parar.

Na entrada e na saída, multidões fazem selfies imitando a pose do super-herói reluzente do cartaz do filme. Quase todos têm a mesma cor de pele, mas as culturas e origens desses negros que se identificam com as roupas, músicas e falas da trama refletem a mistura da cidade.

Véus cobrem os cabelos das muçulmanas. Enormes afros com pentes enfiados nos cachos turbinam o look dos garotos do bairro, enquanto outras meninas se dividem entre as de tranças coloridas e as que vão de brincos gigantes, lembrando o aro de uma cesta de basquete.

Muitos fazem da ida às sessões um desfile de moda mesmo, usando maquiagem e acessórios que evocam a estética afro-futurista do filme e transformando as salas do cinema em espécie de tapete vermelho do orgulho negro.

O blockbuster que já faturou cerca de R$ 2,3 bilhões em bilheterias pelo mundo desde que estreou duas semanas atrás parece ter um impacto mais profundo nesse cinema com enormes janelas voltadas para o Apollo, a casa de shows do outro lado da rua onde Ella Fitzgerald, Aretha Franklin e Billie Holiday começaram a cantar nas noites da maior cidade americana.

Não por acaso, retratos das cantoras estampam os corredores entre as salas de exibição, ao lado de outras figuras históricas como Martin Luther King e Muhammad Ali, o vidro sobre eles refletindo as letras de neon vermelho brilhando na fachada da casa Apollo.

"Todos nós aqui estamos unidos pela negritude", dizia Atiya Elliott-Semper, uma menina de turbante amarelo que via o filme pela terceira vez com um grupo de amigos.

"Fizeram um filme de negros falando para negros. Ele é um herói que também é rei de um país que nunca foi colonizado e usa a sua inteligência para se manter livre", ela diz sobre o homem fortão que se transforma numa pantera imbatível na tela grande.

Wakanda, o reino fictício do filme, é tão colorido quanto o Harlem idealizado dos murais no saguão do cinema, em que Magic Johnson, o astro do basquete que dá nome ao lugar, olha sorridente para meninos de boné e garotas pulando corda diante de prédios de apartamentos novinhos e das torres de Manhattan brilhando no horizonte.

"Estava louco para ver isso se tornar uma realidade no cinema", dizia Omar Arponare, rapaz que veio de Honduras com a família para viver no Bronx, outro distrito de maioria negra em Nova York. "Se você for negro, talvez tenha passado a sua vida inteira esperando esse momento."

Ver "Pantera Negra", de fato, virou quase um ritual de autoafirmação para famílias inteiras que lotam sessão atrás de sessão desse filme.

Suas reações às estripulias na tela, de aplausos a gritos, seguem à risca os momentos-chave do roteiro, dando a entender que já viram o filme antes e vão continuar a ver.

Mulheres vão ao delírio nas cenas de luta em que as guerreiras mostram que sabem lutar melhor do que os homens e suspiram pelos looks da espiã Nakia (Lupita Nyong'o).

Os meninos, que saem da sala imitando as acrobacias do Pantera Negra, também não escondem o fascínio pelo herói da mesma cor deles.

"Isso é a cultura negra, é algo que nos dá orgulho", dizia Devin Williams, um rapaz fã de gibis de super-herói no meio do alvoroço do saguão. "Todo mundo está falando disso, sei que há muitos negros muito impressionados."

O aplauso sonoro no fim da sessão não deixa dúvida disso. Outros, além de impressionados, veem o filme como eco dos protestos dos negros contra o atual presidente americano e seus discursos de indisfarçável teor racista.

Quando Pantera Negra surge em cena dizendo que "há mais a nos unir do que a nos separar" e que "em tempos de crise sábios constroem pontes enquanto tolos constroem barreiras", muitos na sala escura gritavam "amém".

E o cinema de repente lembrava uma igreja, o palco de uma redenção detonada pelas fantasias de Hollywood que a plateia gostaria de ver transbordar para a realidade.

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