Descrição de chapéu Artes Cênicas teatro

Projeto traça panorama da dramaturgia brasileira

Programação vai até dezembro no Sesc Ipiranga; a pedido da Folha, autores discutem a produção teatral

Ricardo Kosovski na peça "Tripas", de Pedro Kosovski
O ator Ricardo Kosovski em ‘Tripas’, peça escrita e dirigida por seu filho, Pedro Kosovski - Lourenço Monte-Mór/Divulgação
MLB
São Paulo

Produção ainda pouco discutida no Brasil, a dramaturgia vem ganhando força nos últimos anos e agora é tema de um projeto do Sesc Ipiranga, com programação que inicia nesta sexta (8) e segue até dezembro.

Dramaturgias, como foi intitulado, é um programa que começou a ser desenvolvido há cerca de três anos. Período em que se viu um crescimento e um amadurecimento da produção de textos teatrais no Brasil, diz Tommy Della Pietra, um dos curadores.

A programação reúne desde leituras cênicas e apresentações de espetáculos até oficinas, debates e uma feira de publicações de textos.

O carioca Pedro Kosovski, d'Aquela Cia., terá três textos seus apresentados: o espetáculo "Laio e Crísipo" (8 a 10/6), uma leitura cênica de "Cara de Cavalo" (13/6) e a peça "Tripas" (15/6 a 8/7), com atuação de seu pai, Ricardo Kosovski.

Já o trabalho do amazonense Francisco Carlos (14 a 17/6) acontece nos jardins da unidade, numa instalação inspirada na obra do artista Helio Oiticica.

Além deles, nomes como Alexandre Dal Farra, Grace Passô e Marcio Abreu integram a programação.

"Achamos importante trabalhar com autores atuantes e proporcionar encontros entre eles", afirma Della Pietra. "Falta essa arena de debate."

Nessa linha estão, por exemplo, os Ateliês de Contato, que colocam frente a frente dois dramaturgos —Newton Moreno e Rudinei Borges (9/6); Vinicius Calderoni e Jô Bilac (10/6); e Aldri Anunciação e Maria Shu (15/6)— para criar um pequeno texto a partir de intervenções do público.

Dramaturgias

  • Quando De 8/6 até dezembro
  • Onde Sesc Ipiranga, r. Bom Pastor, 822
  • Programação www.sescsp.org.br/ipiranga

 

​A pedido da Folha, oito dramaturgos que participam do projeto responderam a questões sobre a produção de textos teatrais hoje. Leia abaixo.

1. O que te levou à dramaturgia? 

Alexandre Dal Farra Eu era diretor musical do Tablado de Arruar. Uma pessoa que tinha assumido a dramaturgia teve problemas, e o grupo me propôs que eu ficasse no seu lugar. Devo isso então ao acaso e à confiança de alguns amigos. Desde então nunca mais deixei de escrever.

Ave Terrena Alves Quando criança, ainda reconhecida como menino, eu era muito tímida, e tinha dificuldade de me relacionar socialmente. Foi por isso que me colocaram no teatro, ainda criança: para "desacuendar", como se diz. Nunca mais parei. Boal e Vianninha foram importantes para entender meu jeito de escrever teatro.

Dione Carlos Fui atriz por pouco tempo. Sempre escrevi, mas ainda não vislumbrava ser dramaturga. Soube da abertura de uma escola pública (SP Escola de Teatro), com curso de dramaturgia, e resolvi tentar. Sou completamente influenciada por Ésquilo, Brecht e Jodorowski.

Michelle Ferreira Enquanto alguns amigos escrevem poemas, eu escrevia diálogos. Foi a dramaturgia que me encontrou, não ao contrário. Tchékhov é a minha lanterna.

Newton Moreno Indignação e esperança. Meu primeiro texto ("Deus Sabia de Tudo e Não Fez Nada") vem da indignação com aspectos referentes à comunidade GLBT, como o preconceito introjetado. "Morte e Vida Severina", de João Cabral de Melo Neto, foi o texto que me chamou a atenção para a máquina da dramaturgia. 

Pedro Kosovski Foi a combinação da escrita íntima de diários de sonhos e poesia e a prática de ator. Com o grupo Aquela Cia, cuja a premissa é a criação de uma dramaturgia original e colaborativa, pude associar a escrita e a atuação.

Rudinei Borges O anseio de desvelar a engrenagem da violência que condena milhões à exclusão mais daninha me levou à escrita dramatúrgica. A urgência de pôr no mundo a palavra engasgada arrancou de mim o dramaturgo-torto. 

Silvia Gomez Quando criança, eu acompanhava os ensaios da minha tia Yara de Novaes. Queria muito fazer parte daquele universo. Sempre quis escrever e, quando estudei teatro, logo percebi que esse seria o meu lugar. Antes dos 20, li "Esperando Godot", de Beckett, e me conectei com a perplexidade do autor diante da existência e da natureza humanas.


2 Como vê a formação de novos dramaturgos?

Alexandre Vejo que essa formação se ampliou de forma significativa. Quando comecei, não havia praticamente nenhum curso de dramaturgia, e isso faz bem pouco tempo, e agora há alguns cursos importantes. 

Ave Vejo os núcleos de dramaturgia como um espaço valioso, e acho que eles precisam se multiplicar. A possibilidade de troca criativa, a meu ver, é mais importante do que a consolidação de "escolas tradicionais" de dramaturgia. Na minha opinião, é preciso conhecer pelo menos um pouco todas as esferas envolvidas na montagem do texto.

Dione Há importantes núcleos de formação em dramaturgia atuando pelo país. Estamos em plena atividade, apesar do deficit educacional, que afasta as pessoas de qualquer ofício envolvendo a escrita.

Michelle Acho importante o espaço formal para o desenvolvimento do artista, mas sei, como nunca estamos prontos, que ele é apenas um princípio de uma jornada muito maior e deveras extenuante.

Newton Em São Paulo, há novos espaços para fomento de dramaturgia, mas gostaria de ver essa rede ampliada. Criar centros de formação espalhados pelo Brasil e estreitar a relação entre eles. Como uma Escola Nacional de Dramaturgia com "filiais" pelo país.

Pedro Ainda que de modo incipiente, observo algumas iniciativas. Percebo nas formações uma tendência a uma especialização da escrita para teatro, o que aproximaria essa prática da formação de um roteirista de audiovisual. Penso que o maior desafio é uma pedagogia complexa atravessada pelas diferentes linguagens artística.

Rudinei A formação de novos dramaturgos ainda é privilégio de uns poucos. Em verdade, temos poucos autores teatrais. Montar uma peça de teatro no Brasil é um parto aterrador. Dramaturgos são subempregados, poucos conseguem passar da segunda peça montada.

Silvia Sinto que houve um enorme crescimento nesse sentido, felizmente, nos últimos dez anos. A minha formação no CPT (Centro de Pesquisas Teatrais), onde hoje dou aula, foi essencial e me mostrou a importância de ter pesquisa e troca.


3 Quais as dificuldades de criar dramaturgia?

Alexandre Num momento em que a esquerda e as pessoas de tendência progressista estão em geral acuadas, o risco é que a arte recrudesça em direção a uma posição puramente afirmativa, que de alguma forma sirva para reconfortar os ânimos daqueles que se sentem pressionados por todos os lados, e com medo. 

Ave O mais difícil é encontrar as pessoas em quem você confia. As condições de produção são triste. Você tem de fazer absolutamente tudo: escrever, reunir a equipe, divulgar, encontrar meios de financiar os projetos, produzir, tirar as fotos, operar o som, a luz, substituir alguém do elenco que saiu duas semanas antes de uma abertura de processo...

Dione Poucos vivem de dramaturgia. A falta de investimento em pesquisa obriga a maioria a se dividir entre escrever peças e manter outras atividades remuneradas. A escrita é uma atividade que demanda muito tempo e energia.

Michelle O Brasil é um país difícil de viver, quanto mais de escrever. Mas, justamente porque precisamos inventar uma outra ficção para essa terra, é tão urgente criar para teatro.

Newton A dramaturgia brasileira está sendo acessada e celebrada. Mas sinto falta de mais editais de desenvolvimento de texto. É muito árido que o dramaturgo tenha que pesquisar e escrever no risco e desamparo.

Pedro De um modo geral, é visível a precarização das artes no Brasil. O problema aqui não é a ausência de um projeto, mas compreender que o projeto perverso em curso é o do desmonte e destruição dos esforço realizados em anos anteriores.

Rudinei O ensino de qualidade é privilégio de uma pequena elite. Quase toda a dramaturgia brasileira contemporânea é uma visão da classe média branca sobre o drama dos pobres. Até pouco tempo nem tínhamos autores negros.

Silvia Na dramaturgia, especificamente, há poucos editais voltados para autores, como é o caso do edital da Mostra de Dramaturgia do CCSP. Editais como esse dão voz e autonomia a quem escreve, permitindo que ele produza o próprio texto.


4 Qual a importância da publicação de textos?

Alexandre É fundamental para que os textos possam ser vistos com outros olhos, repensados ao longo do tempo, para além da fugacidade do teatro.

Ave O poder da escrita é imenso, e precisamos nos apropriar dele para contestar os discursos hegemônicos que se baseiam em genocídio, tortura e desigualdade. Além do que, também é uma maneira de ampliar o acesso ao teatro.

Dione Editar e publicar um texto teatral é um meio de registrar uma obra e viabilizá-la ao público, garantir o não apagamento da autoria. Acredito tanto nisso que banquei a minha primeira publicação ("Dramaturgias do Front") e o fiz depois de passar meses tentando ser publicada, muitas vezes sem nem mesmo uma resposta das editoras.

Michelle Muito importante. Eu, por exemplo, tenho mais de dez textos montados no Brasil e no exterior. Apenas um está publicado.

Newton A publicação permite a circulação. Acesso a autores de outras regiões. Além de poder ser utilizada em escolas, apresentando a dramaturgia brasileira. Fundamental a aproximação com as salas de aula, formar novos públicos.

Pedro Há uma tendência, no meu caso, em que o texto "vem depois", é um dos último termos a se formalizar dentro da criação. Com isso, a dramaturgia verbal tende a ter autonomia em relação à cena. Não é mais o caso de se pensar o gênero historicamente inferiorizado como o da literatura dramática, mas, no caso da publicação, um dispositivo de emancipação da escrita em relação à cena.

Rudinei Poucas editoras publicam dramaturgia no Brasil. Teatro não vende, os editores dizem. Publicar uma peça de teatro em livro é recusar a morte prematura de um texto. Ser um dramaturgo vivo é quase uma condenação no Brasil. Sempre vão te olhar com desconfiança.

Silvia Muito importante. Percebi isso após a publicação da minha peça "O Céu Cinco Minutos Antes da Tempestade". Por causa dessa edição, a peça foi traduzida para espanhol, inglês, italiano, francês, sueco, alemão, mandarim. Isso expande nossas possibilidades, claro, dá visibilidade ao que está sendo feito aqui.


5 Quais temáticas você vê predominarem hoje?

Alexandre As questões políticas têm sido tratadas sob a ótica das questões ligadas à negritude e às questões de gênero, essa virada se deu há alguns anos e instalou-se de maneira mais ou menos geral no país.

Ave As vidas marginalizadas estão cada vez mais no foco das atenções, mas muitas vezes ainda retratadas de modo raso ou pejorativo. Por isso a importância da representatividade negra, trans e indígena, entre outras.

Dione As temáticas estão muito ligadas aos grupos mais afetados socialmente por uma estrutura injusta de poder. E o fazem através de formas dramatúrgicas híbridas, misturando influências e sistemas.

Michelle Vejo predominar o surgimento de vozes singulares. Não existe uma forma predominante. O que existe é a individuação radical de cada escritor.

Newton Há uma forte negociação entre os espaços de ficção e documental, por exemplo. Sou particularmente interessado pelos autores curiosos com a formação de nosso país e nossos eixos fundadores.

Pedro Com a politização da vida cultural brasileira, a arte também está sob pressão. Os artistas estão sendo provocados a inventar uma linguagem que esteja mais próxima da vida. Isso não é um desafio pequeno. É preciso ter coragem para recriar uma linguagem que aproxime as palavras e as experiências.

Rudinei A dramaturgia brasileira contemporânea é um mosaico de caminhos incertos. A forma é repetidamente um espectro malfadado que vem da Europa. Tenho a impressão de que dramaturgos brasileiros desconfiam da sua capacidade de criar todo o tempo. Não causa estranheza que nada verdadeiramente valioso tenha surgido na dramaturgia brasileira nos últimos 30 anos.

Silvia Sinto que o abismo social e os problemas políticos que nosso país vem enfrentando têm, é claro, aparecido na dramaturgia. Ao mesmo tempo, penso em como deve ser esse diálogo, pois para mim a arte é um lugar de perguntas, mais do que de respostas. Como falar do que incomoda sem perder a poesia, que é para mim o que alimenta —aquela que vê mais fundo e mais longe?

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