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Artes Cênicas

'A Barragem de Santa Luzia' faz bom uso da fábula como utopia das resistências

Peça, sobre comunidade alagada por abertura de barragem, alude ao ocorrido em Mariana (MG)

amilton de azevedo

A Barragem de Santa Luzia

  • Quando Seg. a qua., às 20h. Até 1º/8
  • Onde Oficina Cultural Oswald de Andrade, r. Três Rios, 363
  • Preço Grátis
  • Classificação 16 anos

Quando uma comunidade ribeirinha é avisada que será alagada pela abertura de uma barragem e que todos devem evacuar o local, uma moradora se nega a partir. Ela passa, então, a criar um mundo próprio em seu quintal como forma de resistência.

O programa de "A Barragem de Santa Luzia" define o espetáculo como uma "fábula da resistência". A estrutura fabular é uma escolha interessante da encenação, que, em consonância com a dramaturgia, faz com que um tema que se desdobra em outros com certa complexidade se organize em uma obra poética e acessível.

O texto de Rudifran Pompeu —que também assina a direção— traz a questão da barragem como gatilho para a ação e como metáfora. O advento da luz elétrica, que será possível por meio dessa ação do governo, contrapõe um anunciado progresso ao seu preço.

Além disso, é impossível não pensar no ocorrido na região de Mariana (MG), ainda mais com a presença tão forte do barro em cena.

O cenário, de Zita Teixeira e da companhia teatral Entre o Trem e a Plataforma, traz a aridez de um sertão —a luz de Lui Seixas, simples, realça essa paleta de cores. Os pequenos bonecos em volta do trilho do trem de brinquedo já anunciam a invenção de mundo que se seguirá. Maria Flor, interpretada por Nataly Cavalcantti, já surge em cena coberta pela terra molhada.

É como se um fim trágico fosse dado como inevitável de antemão. A construção lenta de uma atmosfera sonora, realizada em cena por Pedro Felício, estabelece um ambiente lamurioso. Neste sentido, a peça parece, no início, apresentar uma fábula do abandono daquela personagem.

Após um breve prólogo, Cavalcantti cobre seu corpo com ainda mais barro e veste uma máscara. A codireção de Tiche Vianna se nota pelo trabalho preciso da atriz dentro da expressividade dessa linguagem. Maria Flor passa a ser menos humana e mais criatura, quase selvagem. Assim, a obra se pinta com tons ainda mais poéticos.

Tal tom se acentua quando a personagem dá vida a João de Barro, interpretado por Clayton Nascimento. Este ser potencializa a construção fabular da narrativa. Como dito no espetáculo, ele é quase o "grilo falante" de Maria Flor.

Conferindo ao ser de barro uma sabedoria quase onisciente —e expressada de forma simples— a dramaturgia encontra um ótimo recurso.

No entanto, a ingenuidade de Maria Flor que contrasta com seu conhecimento não é uma constante. Ela parece, por momentos, demonstrar uma consciência de classe que não condiz com o apresentado ao longo da montagem.

Não chega a ser um problema, mas gera certo ruído na recepção. Até porque a estruturação da resistência da personagem traz consigo a marca de sua inocência.

A recusa em sair de sua terra não envolve um enfrentamento concreto do problema —o que ao mesmo tempo confere a suavidade poética da encenação, mas parece também impedi-la de ter maior potência em uma trajetória mais conflituosa.

Na busca por criar um mundo particular no próprio quintal, o que se vê é a construção de uma utopia das miudezas. Dessa forma, temas muito caros à política e aos afetos contemporâneos são apresentados de maneira sutil.

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