Quando uma comunidade ribeirinha é avisada que será alagada pela abertura de uma barragem e que todos devem evacuar o local, uma moradora se nega a partir. Ela passa, então, a criar um mundo próprio em seu quintal como forma de resistência.
O programa de "A Barragem de Santa Luzia" define o espetáculo como uma "fábula da resistência". A estrutura fabular é uma escolha interessante da encenação, que, em consonância com a dramaturgia, faz com que um tema que se desdobra em outros com certa complexidade se organize em uma obra poética e acessível.
O texto de Rudifran Pompeu —que também assina a direção— traz a questão da barragem como gatilho para a ação e como metáfora. O advento da luz elétrica, que será possível por meio dessa ação do governo, contrapõe um anunciado progresso ao seu preço.
Além disso, é impossível não pensar no ocorrido na região de Mariana (MG), ainda mais com a presença tão forte do barro em cena.
O cenário, de Zita Teixeira e da companhia teatral Entre o Trem e a Plataforma, traz a aridez de um sertão —a luz de Lui Seixas, simples, realça essa paleta de cores. Os pequenos bonecos em volta do trilho do trem de brinquedo já anunciam a invenção de mundo que se seguirá. Maria Flor, interpretada por Nataly Cavalcantti, já surge em cena coberta pela terra molhada.
É como se um fim trágico fosse dado como inevitável de antemão. A construção lenta de uma atmosfera sonora, realizada em cena por Pedro Felício, estabelece um ambiente lamurioso. Neste sentido, a peça parece, no início, apresentar uma fábula do abandono daquela personagem.
Após um breve prólogo, Cavalcantti cobre seu corpo com ainda mais barro e veste uma máscara. A codireção de Tiche Vianna se nota pelo trabalho preciso da atriz dentro da expressividade dessa linguagem. Maria Flor passa a ser menos humana e mais criatura, quase selvagem. Assim, a obra se pinta com tons ainda mais poéticos.
Tal tom se acentua quando a personagem dá vida a João de Barro, interpretado por Clayton Nascimento. Este ser potencializa a construção fabular da narrativa. Como dito no espetáculo, ele é quase o "grilo falante" de Maria Flor.
Conferindo ao ser de barro uma sabedoria quase onisciente —e expressada de forma simples— a dramaturgia encontra um ótimo recurso.
No entanto, a ingenuidade de Maria Flor que contrasta com seu conhecimento não é uma constante. Ela parece, por momentos, demonstrar uma consciência de classe que não condiz com o apresentado ao longo da montagem.
Não chega a ser um problema, mas gera certo ruído na recepção. Até porque a estruturação da resistência da personagem traz consigo a marca de sua inocência.
A recusa em sair de sua terra não envolve um enfrentamento concreto do problema —o que ao mesmo tempo confere a suavidade poética da encenação, mas parece também impedi-la de ter maior potência em uma trajetória mais conflituosa.
Na busca por criar um mundo particular no próprio quintal, o que se vê é a construção de uma utopia das miudezas. Dessa forma, temas muito caros à política e aos afetos contemporâneos são apresentados de maneira sutil.
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