Descrição de chapéu Artes Cênicas

Baseada em notícia de jornal, peça desconhecida de Camus ganha nova montagem

'O Mal-Entendido', que estreia em São Paulo, constrói um retrato da intolerância e da falta de sentido da vida

Marcelo Andrade (ao fundo), Maria do Carmo Soares e Lara Córdula (sentada) em ensaio de ‘O Mal-Entendido’ - Lenise Pinheiro/Folhapress
MLB
São Paulo

Em janeiro de 1935, um pequeno hotel de Belgrado foi cenário de um crime peculiar. A dona do estabelecimento e sua filha, na tentativa de roubar um hóspede, acabaram por matá-lo.

Só depois a proprietária percebeu que aquele era seu próprio filho, hospedado ali para lhe fazer uma surpresa. Inconsolável, a mãe se enforcou, e a filha se jogou num poço.

A história chamou a atenção de um jovem Albert Camus (1913-60), que leu a notícia na primeira página do "Écho d'Alger". O escritor acabou por incluir uma referência ao caso em seu romance mais célebre, "O Estrangeiro" (1942) —o protagonista, Mersault, em dado momento lê sobre o crime num periódico.

Mas o impacto da história ainda deu origem a outra obra de Camus, o espetáculo "O Mal-Entendido", que ganha nova montagem brasileira nesta quinta-feira (26).

Trata-se de um peça pouco conhecida do argelino. Foi publicada em 1944 na mesma edição de "Calígula", e acabou ofuscada por esta última. Tampouco foi bem vista, na década seguinte, pela crítica brasileira, que a considerava sem tensão dramatúrgica.

Mas, para Ivan Andrade, que dirige a nova montagem, é justamente nas sutilezas que reside uma das forças da obra.

"Camus vai plantando determinadas imagens ao longo da peça, que no fim ganham outros significados, fortalecem a metáfora", diz o encenador, que nos últimos anos trabalhou muito ao lado do diretor Gabriel Villela (como assistente de direção) e foi diretor técnico de Bob Wilson e Frank Castorff, quando estes se apresentaram no Brasil.

A trama remete ao caso verídico de Belgrado, mas aqui se passa num local indefinido.

Uma mãe (Maria do Carmo Soares) e sua filha, Marta (Lara Córdula), vivem num fim de mundo de onde sonham em sair: anseiam em ver o mar. Para tanto, sedam os hóspedes de seu hotel para roubá-los e matá-los, jogando depois seus corpos no rio.

João (Helio Cicero), filho da dona da hospedaria, há muito fugiu de casa. Hoje adulto, casado com uma estrangeira (Jaqueline Momesso) e rico, decide rever a família. Vai ao hotel como um cliente, esperando que a mãe e a irmã o reconheçam, mas as duas não o identificam de pronto.

"A grande questão filosófica de Camus é o absurdo", afirma o diretor. "Mas não o absurdo no confronto da linguagem [como visto em obras de Beckett e Ionesco, por exemplo]. A questão dele é o absurdo da realidade, da existência."

Como se vê na reação do protagonista de "O Estrangeiro" ao ler a notícia no jornal: "Por um lado, era inverossímil. Por outro, era natural".

O autor costura uma série de alusões a partir da trama de "O Mal-Entendido". Da opressão dessas mulheres, que querem fugir para o mar (a liberdade) ao filho que é agredido pela mãe (ou sua pátria).

Na sua encenação, Andrade reforça as metáforas, tendo por cenário uma estrutura em frestas. Os personagens por vezes passam por trás delas, ora sendo vistos, ora não.

A cenografia tem uma textura de musgo, remetendo à estagnação das protagonistas, algo também aludido nas malas que cobrem o palco.

O personagem de um criado (Marcelo Andrade) corrobora com o absurdo, criando ações cômicas e deslocadas do restante da história —como fazer uma dancinha enquanto ouve música num fone de ouvido.

Argelino radicado na França, Camus deixa forte no texto uma discussão sobre a identidade, debate tão presente hoje. "E também como, nas disputas identitárias, você acaba não reconhecendo o outro, não dando margem ao convívio", comenta o encenador.

Por fim, continua Andrade, a peça reforça uma das bases da filosofia do argelino: de que é a partir da falta de esperança que um indivíduo cria um sentido para a sua vida.

O Mal-Entendido

  • Quando Qui. a sáb., às 20h30. Até 25/8
  • Onde Sesc Pinheiros - auditório 3º andar, r. Paes Leme, 195
  • Preço R$ 7,50 a R$ 25
  • Classificação 14 anos
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