Em Roma, Caetano Veloso emociona e faz tributo ao cenógrafo Helio Eichbauer

Ao lados dos filhos Zeca, Tom e Moreno, cantor apresenta o show 'Ofertório'

Igiaba Scego
Roma

Roma ama Caetano Veloso. E Caetano ama Roma. Um amor correspondido e que a cada momento desponta na música, especialmente nas homenagens que o cantor brasileiro vem fazendo durante toda a sua carreira ao cinema e à cultura italianos.

Na bela sala do Auditorium Parco della Musica, projetado por Renzo Piano, a expectativa quanto ao show "Ofertório" é forte, um pouco porque a acústica do auditório é excelente e um pouco porque todos se sentem convidados para uma reunião especial.

A banda é formada pela família Veloso: o pai Caetano e os filhos Zeca, Tom e Moreno. Idades diferentes, maneiras diferentes de abordar a música, vozes diferentes, mas, canção após canção, todos se fundem em um grande vórtice.

É difícil falar de "Ofertório" sem se comover. Cristina Vuerich, veterana fã de Caetano, que não perde um de seus shows, diz que ele "expôs seus afetos muito mais do que em qualquer outro espetáculo", e acrescenta que sentiu "que estava sentada ao lado de dona Canô, a mãe de Caetano".

E é assim que nos sentimos. É como estivéssemos em Santo Amaro, ou na casa deles no Rio de Janeiro; cada canção oferecendo vislumbres da intimidade, das conversas pessoais entre pai e filhos. E tudo isso mostra o jeito deles de amar a música e de brincar com ela.

O show começa com "Alegria, Alegria" —e um tremor de emoção toma o público italiano. "Caminhando contra o vento, sem lenço sem documento, no sol de quase dezembro, eu vou" traz a muitos dos espectadores recordações não só da estreia do jovem Caetano, com seus cabelos encaracolados, mas da coragem dos migrantes que, apesar de tudo, atravessam o Mediterrâneo em barcos precários, para cruzar fronteiras. Foi isso que pensou Farida Nemiri, argelina.

Era sua primeira experiência em um show de Caetano Veloso, e dizia que "é uma emoção que prende. A vontade é de ficar aqui e escutá-los para sempre".

A música é doce, o som murmurante de uma intimidade que não grita e não se apressa, mas acompanha o ouvinte como escolta enquanto ele mergulha em atmosferas tanto benignas quanto sulfurosas.

É aí que entram os solos de guitarra de Tom, a voz rouca e pastosa de Zeca e o brilho rápido de Moreno. Caetano não rege a orquestra; é como se fosse conduzido pelos filhos.

Ele é pai, mas também, em certo sentido, o filho de seus filhos. Aprende com eles a aspirar ventos novos. E juntos nos levam pela mão a Santo Amaro. Vemos a procissão de Nossa Senhora, o Carnaval, as missas.

E em "Genipapo Absoluto", aquela cidadezinha onde tudo começou se torna visível de Roma. E é como se a capital italiana se transformasse um pouco em Santo Amaro quando eles tocam a canção "Reconvexo".

Naturalmente não faltam nos show os grandes sucessos de Caetano. Mas todos são revisitados sutilmente por essa linha vestida de rosa que é sua família.

"Trem das Cores" e "Oração ao Tempo" se transformam diante de nossos olhos estupefatos em orações laicas, que sobem ao céu abafado de Roma neste fim de julho.

Rino Bianchi, fotógrafo que já assistiu a muitos shows do brasileiro, diz sem rodeios que acaba de ver "Caetano em estado de graça". "Foi quase como tocar algo de sagrado. Não sei explicar bem, mas era como se houvesse algo de sagrado nesse show".

E a espiritualidade e religiosidade foram de fato evocadas no palco pela família Veloso. Caetano confessa não ser religioso, mas, em seguida, em italiano aprendido de tanto assistir aos filmes de Fellini e Antonioni, diz: "Meus filhos são religiosos". Zeca e Tom são cristãos e Moreno se interessa pelas religiões orientais e afro-brasileiras. Moreno acrescenta que é macumbeiro.

E é nesse ponto que o título "Ofertório" é explicado. Dona Canô, em certo sentido, era muito devota, e por isso seu filho escreveu uma canção em primeira pessoa, falando sobre o sagrado que o cerca.

Trata-se de uma homenagem à mãe, mas também à terra natal, devota e ligada ao mundo que não se vê a olhos nus.

O show emociona, mas com leveza. E há também o momento da risada, da batucada, do jogo.

A cenografia de um sol que se tinge de arco-íris mergulha o público em um universo paralelo onde tudo pode acontecer. Uma cenografia de beleza perturbadora em sua simplicidade que desarma.

E é da cenografia que os nossos mosqueteiros da música falam, em dado momento do show.

O homem que a criou se foi. Antes do espetáculo, surgiu a notícia da morte de Helio Eichbauer (1941-2018), um dos melhores cenógrafos latino-americanos.

A voz de Caetano fica embargada. Surgem lágrimas nos olhos da banda e do público.

E Moreno, como se oficiando o luto, diz, singelamente: "Dedicamos este show a ele".

Igiaba Scego
Convidada da Flip 2018, é escritora e jornalista italiana de origem somali

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.