Ancine dá nota a diretores e provoca críticas entre cineastas

Produtores temem que isso acabe lhes tirando a possibilidade de receber propostas

Guilherme Genestreti
São Paulo
Adirley Queirós, do elogiadíssimo “Branco Sai, Preto Fica” é um diretor nota 7. Quem tirou 10 foi André Pellenz, do blockbuster nacional “Minha Mãe É uma Peça”. Felipe Sholl, vencedor do Festival do Rio por “Fala Comigo”, nem foi avaliado. E um dos maiores nomes do cinema brasileiro, Rogério Sganzerla, tem nota 5 –ele morreu em 2004.
 
Ao publicar as notas dos diretores brasileiros de acordo com seu desempenho comercial, a Ancine (Agência Nacional do Cinema) atraiu uma avalanche de críticas nas redes sociais e em grupos privados de conversa de cineastas. Outros realizadores, além da própria agência, defendem o sistema. ​
Cena do filme "Branco Sai. Preto Fica", de Adirley Queirós, vencedor do Festival de Brasília
Cena do filme "Branco Sai. Preto Fica", de Adirley Queirós, vencedor do Festival de Brasília - Divulgação

A pontuação é um dos critérios para habilitar o recebimento de verbas do edital de fluxo contínuo. O programa de fomento vai distribuir R$ 150 milhões a projetos de longa-metragem com base numa pontuação que inclui quantidade de obras lançadas e êxito comercial tanto de produtoras quanto distribuidoras e de diretores vinculados aos projetos.

 
O valor se refere a praticamente um quinto de toda o orçamento anual para a atividade audiovisual no Brasil.

Há cineastas que já lançaram obras, mas não aparecem na lista, caso de Sholl. Há diretores que já morreram (Sganzerla, Hector Babenco, Nelson Pereira dos Santos....). Outros se queixam do que chamam de “aleatoriedade” na atribuição das notas.

O diretor Vicente Amorim, de “Corações Sujos” e “Motorrad”, reclama que a pontuação não considera filmes internacionais dirigidos por brasileiros (como o seu “Um Homem Bom” ou “O Jardineiro Fiel”, de Fernando Meirelles). “Se isso não qualifica um diretor, não sei o que qualificaria.”

Diretora de “Meus 15 Anos”, sexto filme nacional mais visto de 2017, Caroline Fioratti não aparece na lista. Ela diz temer que a pontuação sirva para contratar diretores no futuro. “Eu ficaria muito encabulada de pontuar mais do que um cineasta que marcou socialmente e artisticamente o nosso cinema. Esta lista é um apagamento também da história”, escreveu em rede social.

O produtor Paulo Boccato, de “Bróder” e “Copa de Elite”, também aponta que, ao divulgar nome e CPF dos cineastas e atribuir a eles notas, a Ancine pode acabar lhes tirando a possibilidade de receber propostas de trabalho.

“Muitos diretores serão escolhidos pelas produtoras não por seu talento ou adequação ao projeto, mas por uma nota dada arbitrariamente que permita abocanhar mais ou menos recursos públicos”, diz.

Em carta publicada nesta segunda (20) no site da Ancine, o diretor-presidente da agência, Christian de Castro, diz que diretores, produtoras e distribuidoras sempre receberam notas, que geravam a classificação em rankings. “A diferença é que, no passado, os critérios de pontuação e as notas deles resultantes não eram transparentes nem divulgados para os proponentes”, escreve (leia a íntegra abaixo). 

E continua: “Diretores e empresas sempre foram julgados, pontuados e comparados entre si, mas isso acontecia longe dos olhos dos concorrentes, muitas vezes com base em idiossincrasias e preferências pessoais de pareceristas e membros de comissões”.

Conforme antecipado pela Folha, o edital já vem sendo alvo de críticas no meio audiovisual há algumas semanas. O principal temor é que ele permita a concentração desses recursos públicos entre as duas maiores distribuidoras do país –a Paris e a Downtown.

Como o desempenho comercial é um dos principais critérios e as duas empresas são responsáveis pelo lançamento dos maiores sucessos nacionais, elas saltam na frente. Pelas regras, um mesmo grupo econômico pode receber até 25% do montante. Teme-se que, desta forma, ambas abocanhem até metade de todos os recursos.

 

Leia a íntegra da carta escrita pelo diretor-presidente da Ancine, Christian de Castro:

Desde a criação da ANCINE, a política de fomento ao cinema e ao audiovisual coordenada pela Agência tem sido continuamente aprimorada, e é necessário que seja assim. Com diálogo e transparência, à medida que o mercado amadurece, novos mecanismos são criados, de maneira a estruturar uma indústria forte, com estímulo ao empreendedorismo e atenção às novas janelas de oportunidade que se abrem. Mudanças no comportamento do consumidor de conteúdos audiovisuais e aceleradas transformações tecnológicas tornam rapidamente obsoletos modelos que eram eficientes pouco tempo atrás, exigindo a adoção de novos formatos de fomento.

É para isso que o Comitê Gestor do Fundo Setorial do Audiovisual - FSA - se reúne periodicamente. Contando com a ativa participação de representantes do mercado, além de membros do governo, Ministério da Cultura, do BNDES e da própria ANCINE, é o Comitê que estabelece as diretrizes de investimentos e os parâmetros de aplicação de recursos, bem como as normas e critérios de seleção dos projetos. Após mais de um ano de debate, reflexão e pesquisa, com embasamento técnico e a valiosa contribuição dos agentes do mercado, construímos mais um mecanismo inovador de estímulo à indústria: o recém-lançado edital de produção para cinema, em regime de fluxo contínuo, com critérios automáticos de pontuação, formulado para atender às necessidades de empresas produtoras e distribuidoras de diferentes portes e características.

 Cabe sublinhar aqui que diretores, produtoras e distribuidoras sempre receberam notas, que geravam a classificação em rankings - o que é inevitável em qualquer processo seletivo, ainda mais envolvendo recursos públicos (uma vez que a ANCINE tem compromisso com a aplicação rigorosa e segura do dinheiro do contribuinte).A diferença é que, no passado, os critérios de pontuação e as notas deles resultantes não eram transparentes, nem divulgados para os proponentes. Diretores e empresas sempre foram julgados, pontuados e comparados entre si, mas isso acontecia longe dos olhos dos concorrentes, muitas vezes com base em idiossincrasias e preferências pessoais de pareceristas e membros de comissões. A parametrização das notas, aliás, também era uma antiga demanda do mercado, que precisa de previsibilidade nos processos seletivos, com pontuações aferidas de forma clara. 

Além de valorizar a consistência das empresas proponentes, que receberão recursos públicos para a produção de projetos de longas-metragens de ficção, documentário e animação, o novo edital estabelece, pela primeira vez, faixas de investimento diferenciadas, de acordo com o porte, o histórico, o desempenho comercial e artístico e a estruturação financeira das empresas. Isso garante que projetos de diferentes ambições, tamanhos e orçamentos sejam contemplados de forma equilibrada, em conformidade com parâmetros públicos e objetivos de investimento, mitigando riscos e otimizando a utilização dos recursos.

Esse modelo induz a estruturação de novos arranjos e amplia a possibilidade de participação de produtoras e distribuidoras novas ou de pequeno porte e de diferentes regiões, uma vez que a nota mínima para habilitação dos projetos foi reduzida. Também estimula em particular as produtoras do CONNE (Centro-Oeste/Norte/Nordeste) e FAMES (MG, ES e Sul), pois, com a nova modalidade, queremos gerar uma demanda que antes não existia. Por outro lado, empresas maiores e com melhor histórico de desempenho poderão acessar mais recursos do que empresas menores e com pouca experiência – lembrando que os aportes do FSA não são a fundo perdido, mas investimentos que devem trazer retorno.

O novo edital faz uso de um banco de dados criteriosamente construído pela área técnica da ANCINE ao longo da última década: o OCA - Observatório do Cinema e do Audiovisual, que coleta e armazena dados primários sobre o audiovisual brasileiro e do banco de dados da Superintendência de Registro da Agência. Essa massa de informações foi finalmente traduzida em conhecimento capaz de orientar as decisões de fomento. O edital possibilita também maior agilidade na análise dos projetos, encurtando o tempo do processamento e acelerando a contratação - uma antiga demanda dos agentes do mercado. Tudo isso com mais transparência e controle: o regulamento para a pontuação de diretores e empresas produtoras e distribuidoras, de acordo com seu desempenho comercial e artístico (este com base na participação e premiação em festivais), é público e transparente.

A política de investimentos no cinema e no audiovisual precisa ser percebida e compreendida de maneira integrada. O novo edital com pontuação automática não substitui os outros mecanismos de fomento, ele os complementa. Em paralelo, continuam sendo lançados pela ANCINE editais de concurso, com processos seletivos que induzem a inovação de linguagem e a participação de novos entrantes. Nesses editais (alguns deles em parceria com a Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura), pela primeira vez na história da Agência foram estabelecidas cotas raciais e de gênero, que se somam aos indutores regionais como formas de garantir a diversidade na produção cinematográfica nacional. Somados, esses editais de concurso aportarão R$ 250 milhões no mercado, enquanto o novo edital de fluxo contínuo para cinema conta com R$ 150 milhões.

O objetivo dos editais de fluxo contínuo – um segundo edital nesse modelo, destinado à produção de obras para a televisão, com R$ 130 milhões, será lançado em setembro – é valorizar a consistência da entrega e a capacidade empresarial das empresas proponentes, além de estimular a formação de arranjos competitivos, porque não existe um mercado forte sem empresas fortes. Mas a ANCINE opera ainda um terceiro nível de investimento: o suporte automático, que premia o histórico recente de desempenho comercial e artístico em cinema, televisão e outras janelas, com mais R$ 56 milhões.

É a combinação entre esses diferentes mecanismos de apoio – editais de concurso, fluxo contínuo e suporte automático – que viabiliza a produção de filmes de menor orçamento para o cinema e de conteúdos menos comerciais para a TV, uns e outros de inegável relevância cultural e artística, além de possibilitar o aumento da competitividade das empresas.

É preciso aprofundar a análise de qualquer edital lançado, sobretudo quando se trata de um modelo inovador de fomento, uma vez que opiniões superficiais e mal-intencionadas provocam transtorno desnecessário num momento que o setor precisa se unir pelo seu crescimento sustentável. Críticas são necessárias e serão sempre bem-vindas para que seja aprimorado o modelo; a ANCINE está preparada para prestar todas as informações e esclarecer todas as dúvidas.

A sociedade e os agentes do mercado podem ter certeza que continuaremos apostando na desburocratização, na agilidade, na transparência, no diálogo e no controle de processos, de forma a garantir o uso eficiente de recursos públicos na estruturação de uma indústria audiovisual dinâmica e atenta às novas possibilidades de crescimento.

 

O edital de fluxo contínuo

  • Lançado pela Ancine, vai distribuir R$ 150 milhões para projetos em cinema
  • Permite que uma mesma empresa concentre sozinha até 25% do total da verba
  • Abriu um racha entre as duas maiores distribuidoras brasileiras (Paris e Downtown) e grupos de produtores independentes

Os grupos no centro da controvérsia

Paris e Downtown

  • Distribuidoras especializadas no lançamento de filmes comerciais
  • Juntas acumularam 98% das bilheterias brasileiras no primeiro semestre
  • Filmes dessas distribuidoras: “Nada a Perder”, “Os Farofeiros”, “Fala Sério, Mãe!”

Produtores independentes

  • Grupos que criticam o edital: Abraci (Associação Brasileira de Cineastas), Apaci (Associação Paulista de Cineastas), Conne (Conexão Audiovisual Centro-Oeste, Norte e Nordeste) e Fames (Fórum Audiovisual de Minas Gerais, Espírito Santo e estados do Sul)
  • Filmes desses produtores: “Uma Noite Não É Nada”, de Alain Fresnot, “Os Últimos Cangaceiros”, de Wolney Oliveira, “Sol Alegria”, de Tavinho Teixeira

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