Conheça a cantora Betty Davis, ex de Miles e amiga de Hendrix reclusa há mais de 35 anos

Pioneira do funk, artista tem trajetória revista em documentário que está a caminho do Brasil

A cantora Betty Davis em junho de 1970  - Baron Wolman/Getty Images
Rafael Gregorio
São Paulo

Quando pensou em fazer um documentário sobre Betty Davis, 73, o britânico Phil Cox não se interessou tanto pela música. Ficou mais ligado na trama pessoal dessa pioneira do funk, ex-mulher de Miles Davis (1926-1991).

Não que a parte musical seja desprezível. Por anos subestimada, Betty recentemente teve seu status reavaliado pela crítica, que alçou a artista a figura central do pop.

Embora seduzido pela mescla de feminismo, negritude e liberdade sexual da cantora, forjada em meio à psicodelia da Nova York dos anos 1960, Cox ficou intrigado com o sumiço dela, mote do longa "Betty - They Say I'm Different".

O filme estreou em junho nos EUA e será exibido no festival Mimo, que divulga nesta quarta (15) sua programação para as edições em Paraty (setembro), Rio de Janeiro, São Paulo e Olinda (novembro). Cox virá para o evento. 

A pesquisa do diretor começou em 2012 e logo se revelou árdua. "Não havia vídeos de shows, entrevistas, fotos, nada", afirma à Folha.

Tampouco foi fácil encontrar a cantora, que vive atualmente em um bairro pobre de Pittsburgh, na Pensilvânia (EUA). Sem celular, sem internet, sem amigos e sem família.

Foram meses até conseguir um contato —​e, depois, anos para agendar uma visita. O diretor até pôde filmá-la, mas sob restrições severas. Foram apenas 30 minutos em quatro anos —e só de soslaio.

Essa limitação o fez abandonar o formato convencional dos documentários musicais em troca de um registro "impressionista", como o definiu o jornal The New York Times.

O diretor se diverte ao lembrar que a primeira coisa que Betty fez ao vê-lo foi criticar seus sapatos. Com Miles Davis ocorreu o oposto. Ela se apaixonou por ele graças aos calçados que o trompetista vestia.

Conheceram-se no final dos anos 1960. Criada em uma fazenda na Carolina do Norte, Betty assinava o sobrenome Mabry e morava em Nova York havia uns anos, para onde se mudou atraída por um curso de moda.

Também trabalhava como modelo e frequentava o Greenwich Village, o bairro boêmio da época. Lá, circulava com amigos como o guitarrista Jimi Hendrix (1942-1970).

Quando conheceu Miles, o músico já era uma celebridade do jazz, mas sua popularidade vinha minguando diante da ascensão dos Beatles e dos Rolling Stones.

Casaram-se em 1968. O relacionamento durou apenas um ano, mas foi o suficiente para mudar a vida dos dois —e também a história da música.

Sem exageros. Foi ela quem apresentou Miles a Hendrix. Daquele contato fagulhou no trompetista o impulso para desbravar o rock, até então repudiado por jazzistas, e arrebentar no fusion com "Bitches Brew" (1970).

O contato com Betty o fez rever também sua estética, trocando os ternos por tecidos de motivos africanos, como o próprio Miles afirmou em sua autobiografia.

As mudanças foram igualmente profundas nela. Foi durante a relação, marcada por agressões de Miles, que Betty trocou de sobrenome e se profissionalizou.

À época, gravou canções sob produção do marido e com músicos dele e de Hendrix, como o pianista Herbie Hancock e o baixista Billy Cox.

O material só viria a público em 2016, no álbum "The Columbia Years", que mostra uma artista em ebulição.

Após as sessões, ela recebeu proposta para gravar com Eric Clapton, mas recusou. Sentia-se discriminada pelas gravadoras. De fato, havia tensão entre os executivos e aquela negra de letras libertárias.

O "não" a Clapton, no fim dos anos 1960, foi o primeiro de muitos. Ela preferia fazer do seu jeito, ainda que para isso tivesse de adiar seu disco de estreia, "Betty Davis", lançado só em 1973. Ela ainda gravaria "They Say I'm Different" (1974) e "Nasty Gal" (1975).

Boicotados pelas rádios, os trabalhos venderam pouco. Seu último álbum, "Is it Love or Desire" (1976), foi engavetado pela gravadora, que queria forçá-la a migrar para a disco music. Após anos na obscuridade, foi lançado em 2009.

Nos depoimentos a Phil Cox, ela parece não se arrepender. "Eu destruí minha carreira porque me recusei a me comprometer", diz a cantora. Hoje, essa postura faz a crítica colocá-la na posição de abre-alas do protopunk —de nomes como Iggy Pop—, que depois viria a dar contornos ao punk de Ramones e Sex Pistols.

"Para fazer sucesso nos anos 1960 e 70, você tinha de se filiar à militância negra, aos direitos civis ou à chapação. Betty era ela mesma e nem usava drogas. Isso levou 20 anos para ser aceito", afirma Cox.

Vieram outros infortúnios. Miles Davis a acusou de adultério na Justiça, seu pai morreu e, com os baques, emergiram sintomas de uma provável esquizofrenia.

Resolveu deixar a música, e foi radical também nessa escolha: passou 30 anos sem sequer ouvir rádio, diz Cox.

Não adiantou nem Prince procurá-la para dizer que era seu fã nem Spike Lee tentar integrá-la em seus filmes.

"Hoje, vivemos em um mundo de futilidade em que tudo o que se faz tem de ser validado pelos outros nas redes sociais, e aí está uma mulher que poderia voltar, ganhar rios de dinheiro e ser famosa, mas prefere ficar só", afirma Cox.

Diretor e personagem desenvolveram uma improvável conexão. "Ela ficou empolgada ao saber que o filme vai passar no Brasil." Ele a convidou para a estreia, em Nova York, onde a cantora Erykah Badu discursou sobre a importância dela em sua carreira.

Na ocasião, Betty foi Betty, diz Cox. Aceitou o convite, mas foi disfarçada à première. "Alguém aí na plateia é Betty Davis. Por favor, aplaudam!"


50 ANOS ADIANTADA

Detalhes e personagens ao redor da hoje reclusa Betty Davis

O diretor

Além de documentarista, o diretor britânico Phil Cox, 43, é também jornalista com experiência em cobertura de guerras. Em 2016, ele foi sequestrado por milícias no Sudão enquanto preparava reportagem sobre atrocidades do ditador Omar al-Bashir em meio a um conflito com rebeldes. Ele resistiu a dois meses de tortura e prisão para preservar um cartão de memória com vídeos que depois publicou no canal de televisão Channel 4 e no jornal The Guardian, na Inglaterra, quando foi libertado.

Catalisadora e musa do fusion jazz

É de Betty Davis o rosto na capa do disco "Filles de Kilimanjaro" (1969), marco inicial do fusion, cuja última faixa ("Mademoiselle Mabry") a homenageia.

O álbum perdido produzido por Miles

Com arranjos do trompetista sul-africano Hugh Masekela (1939-2018), as faixas do álbum "The Columbia Sessions", gravado em 1968-1969 e lançado apenas em 2016, revelam intimidades, como Miles instruindo a esposa antes de gravar a canção "Politician Man": "É desse jeitinho mesmo, querida, com o chiclete na boca e tudo o mais".

À frente de seu tempo

Betty Davis foi autora de versos de perspectiva feminista e empoderada, abordando sexo e prazer sob uma ótica até então restrita a artistas homens.

Como em "Shoo-B-Doop and Cop Him":

"Manas, não consigo evitar/ Vou degustá-lo até o sol nascer/ E quando minhas pernas ficarem bambas/ Elas vão saber, e nós ainda estaremos mandando ver."

Ou em "Don't Call Her No Tramp":

"Você pode chamá-la de modinha/ Superficial/ Prostituta elegante/ Mas quando ela te deixar porque não precisa mais de você/ E se sentir um otário/ Não a chame de vagabunda."

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