Veneza abre as portas para streaming enquanto ignora representatividade

Festival reúne filmes de Alfonso Cuarón, Paul Greengrass e dos irmãos Coen, todos da Netflix

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Emma Stone em 'The Favoriute', de  Yorgos Lanthimos, que concorre ao Leão de Ouro no Festival de Veneza

Emma Stone atua no novo longa do diretor grego Yorgos Lanthimos, ‘The Favourite’, ambientado na Inglaterra do século 18 e uma das atrações do festival Divulgação

Veneza

O Festival de Veneza, o mais antigo do cinema mundial, chega nesta semana aos 75 anos com um pé na inovação e outro no passado.

Por um lado, recebe o que muitos chamam de “cinema do futuro”, com uma forte programação de filmes em realidade virtual e produções feitas por serviços de vídeo sob demanda (como a Netflix). 

Por outro, mostra desconexão com a sensibilidade moderna, ignorando as demandas de representatividade feminina. Há apenas uma diretora entre os 21 nomes da competição pelo Leão de Ouro, que começa nesta quarta (29).

“Eu preferiria mudar de trabalho a ter que escolher um filme por ser de uma mulher, e não por sua qualidade”, disse Alberto Barbera, diretor do Festival, após o anúncio da lista competitiva, em julho. 

“Ficaria feliz de ver mais mulheres no festival, mas não depende só de mim”, completou o italiano, que escalou para a disputa principal apenas a australiana Jennifer Kent, com o filme “The Nightingale”.

Grupos feministas chiaram. A associação Rede Europeia das Mulheres no Audiovisual exigiu que o festival italiano se comprometesse a assinar um termo garantindo a paridade de gêneros.

“Quando Barbera ameaça largar o posto, perpetua a noção de que escolher filmes feitos por mulheres envolve rebaixar padrões de julgamento”, diz trecho de uma carta aberta da entidade ao festival.

“Desculpe, mas está provado que, em vez de evitar o mérito, as metas e cotas ajudam a promovê-lo, ampliando a gama de candidatos.”

Barbera nem comentou a carta. Sua atitude pouco flexível soa antiquada em tempos em que as pautas femininas ganham força como nunca na indústria, com o fortalecimento de movimentos como o MeToo e o esforço da Academia de abrir a gama de votantes do Oscar para um público mais variado.

Mas, se nas questões “inclusivas” Veneza permanece em algum lugar do passado, em outros campos tem se mostrado muito mais aberto que outros eventos similares.

Dos três grandes festivais europeus de cinema (os outros são Cannes, na França, e Berlim), Veneza tomou a dianteira em promover uma seção toda voltada à produção em realidade virtual. 

Há, desde o ano passado, um grande pavilhão, dedicado especificamente a essas obras. Ao final, serão conferidos prêmios que ainda soam um tanto pitorescos, como o de melhor “história imersiva” e o de melhor “experiência de conteúdo interativo”.

Além disso, na competição principal, o evento se mostra amigável às produções de serviços de streaming e sob demanda. Por abertura de mentalidade, sim, mas também por benefício próprio.

Foi o primeiro a ter um deles na disputa pelo prêmio principal (“Beasts of No Nation”, em 2015). Nesta edição, foi favorecido pela rixa entre o rival Cannes e a Netflix.

No ano passado, o evento francês decidiu que só apresentará na mostra competitiva filmes que serão exibidos depois em  sala de cinema tradicional. A Netflix comprou a briga e, na edição deste ano, em maio, recusou-se a levar suas produções ao balneário francês. Cannes sentiu os efeitos —seu tapete vermelho foi um dos que tiveram menos grandes estrelas de Hollywood em anos.

Assim, Veneza recebeu de bandeja a possibilidade de exibir em primeira mão alguns dos filmes mais aguardados da temporada. Na competição, três são da Netflix: “Roma”, do mexicano Alfonso Cuarón, “22 July”, do britânico Paul Greengrass, e “The Ballad of Buster Scruggs”, dos irmãos americanos Joel e Ethan Coen.

Mas a cereja do bolo será exibida em evento especial, não competitivo: “The Other Side of the Wind”, longa que Orson Welles filmou nos anos 1970 e que jamais concluiu.

Uma versão próxima da que teria sido a desejada pelo cineasta de “Cidadão Kane” foi finalmente editada, depois que a Netflix injetou dinheiro no projeto. A première  acontecerá no Lido, na próxima sexta.

“[Não faz sentido] recusar as mudanças trazidas pelas transformações tecnológicas, a revolução digital ou as mudanças do mercado”, afirma Barbera, em nota oficial. 

E também não perde a chance de alfinetar os concorrentes. “Outros festivais podem ter diferentes objetivos: definir o que é bom cinema e o que é ruim, por exemplo. Mas e se o mais importante fosse tentar compreender, agarrar suas férteis contradições e complexidades em vez de estabelecer hierarquias temporárias?” 

Barbera indaga ainda se não seria mais importante “incluir, em vez de fazer distinções dogmáticas, ir além dos limites em vez de levantar barreiras”.

Mas a posição progressista também tem um preço —donos de salas italianas já preparam um contra-ataque. 

Lançaram uma nota criticando Veneza e contestando “iniciativas que permitem o lançamento simultâneo de alguns filmes em salas e em outras mídias”. E deixam claro que vão “tomar todas as medidas para reduzir essa prática”. 

Veneza chega aos 75 com um comportamento que mistura conservadorismo e arejamento, mas, sobretudo, um forte gosto pela polêmica.

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