Descrição de chapéu

Obras retratam festas que descambam para a violência como tensa fronteira entre ordem e caos

Cultura atual reflete o mal-estar na civilização contemporânea

Silas Martí

Os desenhos que restaram não traduzem as reais dimensões do drama. São linhas soltas sobre papel amarelado que Hélio Oiticica rabiscou num dos momentos mais raivosos da história do país, forjando a planta arquitetônica, seca e esquemática, do momento em que a euforia cede ao terror.

O artista, abalado pela execução de um amigo na ditadura militar, pensou em montar uma tenda de circo em praça pública. Dentro dela, “música de discoteca” tocaria em altíssimo volume e luzes estroboscópicas ofuscariam a vista, escondendo o perigo que se avolumava do lado de fora.

No happening idealizado —e nunca realizado— por ele, os festeiros seriam surpreendidos por uma roda de homens a cavalo. O assalto dos vigilantes, algo entre bandidos e a encarnação das polícias de um regime com apreço pela tortura, abafaria os uivos hedonistas da celebração.

Oiticica estetizava ali a agonia da festa bem no rastro do AI-5, o decreto que marcou o recrudescimento da ditadura. Seus estudos para o que chamou, sem rodeios, de “Ronda da Morte” reaparecem agora numa exposição sobre a arte de oposição aos generais surgida na ressaca do ano de 1968.

Quase cinco décadas depois da canetada de Costa e Silva naquele mês de dezembro, o Instituto Tomie Ohtake abre nesta semana uma exposição que, sem pendor algum para a sutileza, confronta os idos dos anos de chumbo com o levante de grupos simpáticos ao fascismo que vêm se enraizando e florescendo pelo mundo.

Mas tanto então quanto agora a visão desencantada e desesperada da atualidade se manifesta na imagem de uma festa que chega ao fim já beirando o abismo físico e moral —no lugar de um estrondo, só um murmúrio surdo.

No mais deslumbrante exemplo dessa estética da ressaca, a peça “Ítaca”, recém-encenada em São Paulo pela diretora Christiane Jatahy, leva ao teatro a ruína líquida e solvente de uma balada que descamba para a violência —o palco do espetáculo vai afundando na água à medida 
que os atritos se acirram. 

Mergulhados num pântano que demora a tomar corpo em cena, os atores cada vez mais encharcados, sobrecarregados pelo peso das roupas, vagam pelo cenário de copos vazios e cinzeiros já cheios.
Tanto os móveis no palco, de um decadentismo pequeno-burguês, quanto os looks da noite flagrados em plena dissolução, do hipsterismo dos millennials aos farrapos de uma guerra, escancaram as marcas dessa tragédia íntima.

Jatahy atualizou a “Odisseia” de Homero para falar sobre a crise dos refugiados na Europa e a disputa pelo poder num Brasil cindido às vésperas das eleições presidenciais, mas verteu o drama para um quadro azedo de violências domésticas que afloram no calor da noite, embaladas pelo álcool entornado das taças.

O ritmo da peça, aliás, espelha a sucessão de estágios da embriaguez, uma escalada que vai da alegria que lubrifica os encontros a um estado feérico de dor e paranoia.

Nesse sentido, o naufrágio espiritual flagrado em “Ítaca” evoca tanto um barco de miseráveis à deriva, da “Balsa da Medusa” de Géricault aos refugiados da atualidade, quanto a culpa burguesa — anestesiada por bons vinhos— diante de um mundo em frangalhos. 

O álcool, ou o que sobrou dele, também remete à melancolia de um fim de festa em “Epílogo”, uma das instalações que a artista Valeska Soares levou à sua retrospectiva em cartaz na Pina Estação.

Numa das salas do museu do centro paulistano, velhas mesas com tampo espelhado servem de descanso para centenas de taças, copos e jarras, alguns deles brilhando no sol de inverno que entra pelas janelas com as últimas gotas de champanhe, rosé e outros drinques abandonados. 

Uma inclinação romântica, ou lamento por laços desfeitos, atravessa toda a obra dessa artista. As bordas douradas e padrões florais cavados no cristal das taças multiplicados ali pelos espelhos dão ar de joia frágil aos escombros de uma comemoração fugaz.

Esse teatro estático de Soares, que na abertura da mostra deixou que convidados provassem as bebidas arranjadas ali e largassem os restos como parte central de seu trabalho, acaba se tornando uma operação nostálgica —um antídoto reluzente à erosão dos sentidos provocada pela festa.

Quem passeia pelas galerias do museu se depara com as provas de um encontro que já não é mais, a colisão de corpos e desejos materializada num acúmulo inerte de transparências e brilhos sobre as mesas.

O cinema, a exemplo do próximo Festival de Toronto, também reflete essa sensação de ressaca. Mesmo produções agora em cartaz entraram na onda, como “A Festa”, obra da diretora britânica Sally Potter.  

No filme em preto e branco, um jantar entre amigos marcado para celebrar a nomeação da anfitriã para um alto cargo no governo aos poucos caminha para o teatro do absurdo, com revelações de intrigas, doenças e infidelidades.

Enquanto os conflitos emergem, a comida no forno pega fogo, a rolha rebelde de uma garrafa de champanhe estoura vidraças e alguns dos convidados quase trocam tiros.

Na cultura atual, a festa aos poucos se torna metáfora para uma zona limítrofe entre a ordem e o caos, o ponto de passagem para um estado de nervos como fios desencapados.

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