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Após temporada na Europa, Christiane Jatahy traz sua 'Odisseia' ao Brasil

Encenadora foi 1ª brasileira a dirigir Comédie-Française, em Paris, e neste ano é homenageada em Lisboa

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MLB
São Paulo

A distância, diz Christiane Jatahy, trouxe um olhar mais próximo. Já há alguns anos trabalhando na Europa, a diretora carioca não deixa de ressoar em suas peças fatos recentes da política e da sociedade brasileiras.

"O Brasil está muito em mim. Não só porque eu sou daí, mas também porque a distância não me deixa parar de olhar", conta a encenadora, 50, em entrevista por videoconferência, de Paris.

Em "Ítaca - Nossa Odisseia", sua versão do épico de Homero, que passou por França e Portugal e chega a São Paulo no fim de julho, Jatahy remete aos conflitos do mundo, à crise de refugiados e a seu país.

"Ítaca para eles [personagens da 'Odisseia'] é a utopia. Mas, para mim, é o Brasil."

O namoro da diretora com a Europa começou há cerca de cinco anos, com convites para encenar por lá seus trabalhos.

No ano passado, ela se tornou o primeiro nome brasileiro a dirigir uma peça na Comédie-Française, tradicional casa parisiense. Hoje, é artista residente no teatro nacional de Bruxelas, no teatro nacional de Genebra e nos parisienses Odéon e Centquatre.

Em Lisboa, foi escolhida a Artista da Cidade em 2018, um programa bienal da cidade que chega à quarta edição com Jatahy —antes, celebrou a belga Anne Teresa de Keersmaeker (2012), o britânico Tim Etchells (2014) e o congolês Faustin Linyekula (2016).

Durante um ano, a diretora apresenta trabalhos do seu repertório, participa de encontros e dá oficinas em diversos teatros. Estes, as instituições responsáveis por selecionar o artista homenageado.

Christiane Jatahy dirige filme de "A Regra do Jogo" na Comédie-Française - Divulgação

"A obra da Christiane tem uma questão muito particular: é pensada numa linha, há uma relação entre todas as peças", diz Aida Tavares, diretora artística do São Luiz Teatro Municipal, onde Jatahy encenou "Ítaca" no início do mês.

Algo muito visível em sua trilogia "Julia" (2011), "E se Elas Fossem para Moscou?" (2014) e "A Floresta que Anda" (2015).

São todas baseadas em clássicos —respectivamente "Senhorita Júlia", de Strindberg, "As Três Irmãs", de Tchékhov, e "Macbeth", de Shakespeare—, mas a cada uma delas Jatahy se afasta do original e se aproxima da atualidade. Caso da turbulência política brasileira no processo de impeachment de Dilma Rousseff, algo aparente em "A Floresta".

"Há uma grande coerência de pensamento, estético e político, e que tem sido fruto de muito debate [em Lisboa]", conta Tiago Rodrigues, diretor artístico do Teatro Nacional D. Maria 2ª, que abrigou a trilogia em maio passado.

A estética é uma fronteira entre teatro e cinema. O vídeo está sempre presente, seja com imagens gravadas, como depoimentos biográficos, seja com reproduções do que acontece em cena, editadas na mesma hora pela diretora com auxílio de seu diretor de fotografia, Paulo Camacho.

Em "Moscou", por exemplo, divide-se o público em dois. Um assiste à peça e outro vê um filme do que se passa no palco e na outra plateia.

"Não é o uso do vídeo evidente, redundante, que se tornou moda no teatro contemporâneo", afirma Rodrigues. "Ela tem um pensamento cinematográfico, de edição, de montagem, de narrativa e, especialmente, de pensar o ponto de vista do espectador."

Jatahy está entre os diretores contemporâneos chamados a oxigenar teatros tradicionais europeus, muito ligados ao texto e ao repertório.

Na Comédie-Française, sua versão teatral de "A Regra do Jogo", longa de Jean Renoir sobre a alta classe francesa pré-Segunda Guerra Mundial, começava com um filme de 26 minutos. Foi gravado nas entranhas do teatro, fundado no século 17 pelo rei Luís 14.

Uma brincadeira com a metalinguagem, já presente no filme de Renoir, que parte de textos clássicos do repertório da Comédie, como Molière.

Segundo a crítica francesa, o espetáculo foi um "miniterremoto" dentro da instituição, que teve sessões lotadas durante o ano de temporada.

"Para mim, a obra de Christiane tem uma interação muito forte com o público", diz Stéphane Braunschweig, diretor do Odéon, onde foi encenada "Ítaca" em março e abril. "Não estamos ali apenas como espectadores, mas como parte da experiência."

De acordo com Rodrigues, "ela consegue fazer um arco: é implicada com a sua realidade, mas compreende que seu discurso sobre o Brasil tem um lugar e faz eco no mundo".

Na sua versão da Odisseia, Ítaca, a terra do protagonista Ulisses, que leva dez anos numa saga para retornar ao lar, é o Brasil turbulento de hoje.

"O que acontece em Ítaca é uma destruição, um devoramento", diz Jatahy sobre a disputa de homens pela mão da Penélope, mulher de Ulisses, que espera resiliente pelo marido. Na peça, a competição dos pretendentes alude à briga pelo poder no Brasil.

"É um paralelo de uma obviedade: pessoas querendo poder em detrimento de qualquer respeito ao próximo."

A diretora cria três Ulisses e três Penélopes, além de figuras repetidas de outros personagens, como a ninfa Calipso, vividos por um elenco brasileiro e francófono —que mescla português e francês em cena.

Os múltiplos se inserem no jogo entre verdade, ficção e improviso que permeia o espetáculo. A peça costura a criação de Homero a relatos reais, que por vezes são mudados, ficcionalizados. Outros são nitidamente verdadeiros, como depoimentos em vídeo de refugiados, que narram as suas odisseias pessoais.

"Tem uma fala muito importante: 'Aqui a guerra não é declarada, ela é permanente'. Acho que é um registro sobre hoje. A guerra não é só sobre o grande, ela é entre as pessoas, é no corpo a corpo", comenta a encenadora, que faz do vídeo e das câmeras aqui um símbolo da guerra, de armas.

"Ítaca" terá uma segunda parte, outra abordagem sobre a "Odisseia", que partirá ainda mais de relatos documentais. Estreia no ano que vem em uma unidade do Sesc-SP, que coproduz a montagem.

Enquanto isso, a diretora também pretende rodar um filme no México ao lado da atriz Mariana Lima e já acumula projetos teatrais na Europa até 2020. Como define o diretor regional do Sesc-SP, Danilo Santos de Miranda, "Christiane é como um Ulisses perdido no mundo".

Ítaca - Nossa Odisseia

 

Trabalhos de Christiane Jatahy


A Falta que nos Move (2005)

A peça, depois versada em filme, discute as relações e a geração artística de Jatahy. Parte da premissa de um espetáculo que nunca começa porque sempre falta alguém

O ator Kiko Mascarenhas em cena do filme 'A Falta que Nos Move' (2007) - Divulgação

Julia (2011)

Adaptação de 'Senhorita Júlia', de Strindberg, fala do envolvimento de uma garota rica com o empregado. Aqui, Jatahy começa a investigar seu cinema no teatro

Os atores Julia Bernat e Rodrigo dos Santos em cena da peça 'Julia' - Lenise Pinheiro/Folhapress

E se Elas Fossem para Moscou? (2014)

Baseado em 'As Três Irmãs', de Tchékhov, ressoa a utopia, a ideia de um lugar melhor. A plateia é dividida em duas: uma assiste à peça, outra ao filme da peça

Isabel Teixeira, Stella Rabello (no aquário) e Julia Bernart em 'E se elas fossem para Moscou?' - Lenise Pinheiro/Folhapress

A Floresta que Anda (2015)

Referência à profecia das bruxas de 'Macbeth', tragédia de Shakespeare, sobre aquilo que é capaz de transformar o poder em voga, como as manifestações populares

A atriz Julia Bernat na peca 'A Floresta que se Move' - Divulgação

A Regra do Jogo (2017)

Torna-se a primeira brasileira a dirigir um trabalho na Comédie-Française com sua versão do filme de Jean Renoir (1939) sobre a burguesia francesa

Montagem de Jatahy para 'A Regra do Jogo' na Comédie-Française - Divulgação
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